Embora tenha se passado uma semana, só agora pude escrever, não por falta de tempo, mas de coragem mesmo, uma covardia que me impedia de olhar o celular e ler as mensagens, de ligar para a família e oferecer conforto.
Falar com o tio, com a tia, com os outros primos, perguntar se estavam bem, estar como que um porto-seguro, mas não sou porto-seguro para ninguém neste momento, a morte por toda a parte fazendo o cotidiano balançar, esboroando qualquer hipótese de normalidade.Demorei a telefonar porque sabia que, no instante em que o fizesse, teria de aceitar essa morte, e não sabia se estaria pronto para isso, para que me dissessem que o primo havia ido embora sem que o visse depois de tanto tempo, que a pandemia o tinha levado, que o menino que minha mãe havia segurado nos braços era hoje um desses números que acompanho todo dia por dever de ofício, numa escalada macabra.
Meu primo era um desses, mas era também sangue do meu sangue.
As brincadeiras de infância, o jogo de bola, a praia, as tentativas fracassadas de paquera na adolescência, o tráfico que fazíamos com revistas de adultos, tudo isso subitamente ganhava uma outra camada, quase como se o passado tentasse alertar o futuro emitindo mensagens de alerta que a gente não entendia.
Antes de ontem resolvi procurá-los. Do outro lado da linha, a voz tumultuada da tia, o choro, mas também as lembranças, que são muitas e atravessam as quatro décadas de vida, as nossas famílias sempre muito próximas, quase enredadas, o destino de uma se prendendo ao da outra, a minha casa sendo a sua e a sua, a minha. Até as roupas partilhadas, o que me servia ou que lhe servia uma hora acabava usado num guarda-roupa comum.
Depois disso a tia ainda enviou fotos. Nelas aparecemos muito jovens, com camisas de time de futebol e sorridentes, conversando com as tias e as primas. Rimos, sabe-se lá do quê, não havia preocupação senão a rodada do campeonato e o cartucho de videogame que iríamos alugar.
Tínhamos ambos entre 14 e 15 anos, eu mais espichado, você o menor da turma, mas sempre precipitado, impetuoso; hoje entendo que era pressa, uma quase agonia de estar antes de todos em algum lugar.
E isso o levou a saltar de paraquedas, a praticar esportes que eu nem sonhava em fazer, a percorrer e visitar cidades, num roteiro ininterrupto e sempre frenético. Por que essa agonia, eu perguntava à mãe, que dizia que você era assim desde pequeno, um menino assustado, mas corajoso também.
E então falou do episódio da avó, lembra dele? Dormimos todos, e, alta madrugada, a avó roncando a sono solto, você acorda entre gritos e corre ao quintal supondo que ali havia uma vaca mugindo muito alto, mas era apenas a avó no quarto vizinho.
No dia seguinte gargalhamos com essa história, a vó sem acreditar que pudesse ter sido confundida com uma vaca. Hoje sei que ela ri ainda, porque fez essa passagem antes de você e por isso também fico feliz.
Feliz que a avó tenha ido antes da pandemia, que essa doença não a tenha alcançado e lhe engolido o ar dos pulmões. Triste porque não conheceu minha filha, mas conformado porque driblou essa peste.
E feliz também porque, no telefone, a tia me contou que levaram você ao lugar onde a avó está, os dois muito pertinho, como se conversassem lado a lado, como você fazia quando ia lá em casa. Sentava na beirada da rede dela e emendava uma história na outra, a avó rindo das piadas e das brincadeiras que você sabia contar tão bem e das quais sinto agora falta.
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