Faz de conta que Fortaleza é uma cidade cujo patrimônio não se preserva, mas se dilapida dia a dia, num rigoroso programa de demolição da memória patrocinado e concorrido, bancado por farmácias e construtoras, empresários cujos sonhos são habitados por torres espichadas com nomes de resorts em Dubai ou Miami.
Ora, veja-se aquela casinha, por exemplo, um dia pertenceu a família abastada, tem menos de 100 anos, como quase tudo na cidade, logo é forte candidata não à proteção, mas ao saque.
De imediato pululam as teses segundo as quais nenhuma construção tem valor histórico com idade inferior a um século, sem ter sido morada de gente não apenas importante, mas também graúda e de senso histórico, de relevância para o andamento da vida na metrópole etc.
O leque de imóveis preserváveis, assim, reduz-se mais e mais, porque se contam nos dedos as edificações com essas características: antiguidade, relevância histórica e memorialística, exemplaridade de uma arquitetura cujo rastro está em vias de se perder.
Enfim, a pretexto de se manter apenas o que tem estima e valor, destrói-se o que é duvidoso e não encontra defesa imediata, porque entre nós vigora esse discursinho fundado numa cientificidade que chancela a predação vertiginosa.
A casinha não tinha valor porque era morada de rico, não de pobre, porque por lá não se tramaram reuniões revolucionárias nem abrigou escritora ou escritor de renome, como se a casa de Rachel de Queiroz não estivesse também pela hora da morte.
Aqui não damos chance para que a memória assente e deite raiz. Arrancamos antes, comemos o fruto verde na pressa para que a árvore novamente frutifique, embora se saiba também que tudo é aridez se falta o tempo para a semeadura.
O tempo sem tempo, é isso que Fortaleza é, metrópole sem orgulho. Melhor, orgulhosa de sua pele de vidro recobrindo os espigões erguidos feito blocos de anteparo ao mar e ao vento, estacas fincadas e perfiladas como sentinelas pastorando um litoral do qual um dia virá o monstro marinho.
O que vai abaixo num piscar de olhos, como a casa da esquina da Beira Mar, morre em vagar, corroída aos bocados, como o São Pedro, outra testemunha que vai embora todo dia, numa morte lenta, de seu interior subtraídos o ferro e a madeira que ainda o mantêm de pé.
O projeto é que o façam desabar, ruir, desaparecer, numa preservação às avessas, numa condenação da memória. O São Pedro é nosso espírito, esquecido, saqueado, impasse histórico, morador de um entrelugar – sem a guarida da lei que o preserve, sem que o derrubem de vez.
É sintomático que, enquanto se redesenhe a Beira Mar, numa refundação horrorosa, aterramento desastrado, manutenção do que é irregular e estímulo a uma ocupação colonizadora, o antigo desaparece e por ele não damos falta, não brigamos, não dizemos um ai, salvo para endossar que o que vai embora não tem valor.
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