Pular para o conteúdo principal

Postagens

Um adendo

É como se tudo se passasse à maneira de uma catarse, uma explosão ao cabo da qual expelimos esse conteúdo rejeitado, mas que é nosso. Está presente. O Brasil que rejeita Karol Conká tenta, de alguma maneira, reparar algo errado, mas o quê? O fato de que o processo se realize por meio do voto é uma dessas coincidências. Logo o voto, que se voltou contra o país na forma de um gestor inepto. Por isso a mobilização coletiva, as certezas em torno da ação, o desejo de que toda a operação se reveste. Tudo faz pensar em algo que poderia ter sido, mas não foi. Como se exercêssemos uma atividade e, por ela, consertássemos um gesto falhado, refizéssemos um erro, voltássemos no tempo e recuperássemos algo perdido. Não quero dizer que tentamos agora fazer o que não fizemos dois anos atrás, mas talvez, e apenas talvez, toda essa impotência e o acúmulo de derrotas, mais os dissabores atuais causados por um presidente mesquinho, tenham convergido de tal maneira que o que deveria ser apenas a saída de...

O Brasil depois de Conká

O que será do Brasil depois de Karol Conká? Me fiz essa pergunta ontem, agoniado entre uma aula remota da filha e o almoço, quando a saída da participante do BBB 21 eram favas contadas e, nas redes sociais, usuários tentavam adivinhar o percentual de rejeição da cantora, se 98% ou 99%. Os mais otimistas chutavam 100%, o que equivale a pensar que mesmo a família da curitibana é favorável à sua eliminação do produto televisivo. Do ponto de vista dos negócios, não é nada implausível. Afinal, cada dia de KC lá dentro é um dígito a menos na sua conta bancária, segundo cálculos que encomendei ao ministro Paulo Guedes – por isso é bom desconfiar. A esta altura, no entanto, se tudo tiver corrido como previsto (no Brasil de hoje nem tudo acontece como deveria acontecer com uma frequência assustadora), Conká deixou o programa e o país pode enfim respirar novamente, certo? Tenho minhas dúvidas. Não sobre o chega pra lá na Conká, que de fato deve juntar os “panos de bunda”, como dizia minha vó, e ...

Tempo assentado

  No começo não levaria tanto tempo. Era tudo provisório, voltávamos para casa e estocávamos alimentos para semanas, certos de que logo encontrariam solução definitiva para o quadro – qual quadro, não sabíamos então, apenas que uma doença se espalhara e o remédio era recolhimento, isolamento, um retorno ao interior, no contato social o risco maior, uma escapada para dentro. Em duas semanas completamos um ano desde março, mês em que, salvo engano, decidiu-se que o melhor seria trabalhar de casa, e em casa permanecemos. Agora já não há previsão. Mesmo a vacina se situa num horizonte impalpável. Pode ser que sim, pode ser que não. O mais provável é que não tenhamos vacina ainda neste ano. Entre idas e vindas, será outro ano de luta contra a doença para a maior parte de nós. Um modo de ir levando as coisas entre normalidade e convulsão. Nem sadios para o dia a dia, nem doentes para o confinamento, adeptos da clausura como profilaxia, esgotados de um processo mediante o qual as energias...

A língua do BBB

  Quando acordei de sonhos intranquilos, a demanda egoica ainda estava lá, agenciada por um comportamento tóxico em favor de uma atitude perversa que eu havia tentado recalcar, mas sem sucesso. Afinal, quem eu era para, às 10 horas da manhã, ainda estar dormindo, escancarando privilégios (reais) e potencializando gatilhos (verdadeiros) entre pessoas cuja vida era um território povoado por toques de despertador tão logo o galo cantava? Atravessado por esse afeto incômodo e moído de culpa matutina, corri à mesa do café, que já estava cuidadosamente posta, mas por quem? Esse sentimento apenas reforçou a narrativa de que a desconstrução do homem branco, cis e hetero não podia aceitar as facilidades classistas, mecanismos cuja finalidade era sabotar o lento processo de harmonização política que eu fazia, tal qual Fiuk, esse, sim, um cara que investia grandão na reformulação de sua psique opressiva. Então joguei tudo fora e preparei eu mesmo o desjejum, certo de que o trabalho da experiê...

Harmonização política

  O amigo envia uma mensagem falando de BBB e dos gatilhos do programa, esses mecanismos que acionam o pior, fazem reviver situações constrangedoras, dolorosas, reabrem feridas e provocam a emersão de conteúdos já recalcados de alguma maneira, coisas que talvez preferíssemos esquecer. “Tô falando como homem branco, cis, hetero”, ele enfatiza, ecoando Fiuk, o avatar do homem cis, branco, hetero & desconstruído, um conjunto de predicados que, sabemos todos, quase sempre dá em coisa ruim, sobretudo quando agenciam (posso, Lumena?) categorias a fim de se fazer passar por bom moço. O amigo não pergunta nada, apenas diz “e o BBB?”, na pergunta em si embutindo um sentido de reflexão que dispensa aprofundamento, porque hoje em dia qualquer referência ao programa já vem naturalmente carregada de uma multiciplicidade de sentidos (posso, Lumena?) conflitantes e incômodos. No fundo, é isso mesmo, o incômodo escancarado de se ver tão bem representado por figuras públicas numa corrida pelo o...

Amor

  O amigo se queixa de outro amigo para quem o primeiro amigo é excessivamente irônico, um tom sempre acima do necessário, nas palavras a nota ácida que flerta com uma crítica injustificada. O amigo se vale da forma para não se deter no conteúdo, dispensando-se de refletir sobre o que lhe cabe: a conduta. Enquanto o outro faz o oposto, concentra-se no conteúdo e não se preocupa com a forma, de modo que o efeito é o contrário do pretendido, ferindo mais que ajudando a mudar, impondo-se como presença e força mais do que como acolhimento. Não sei como fazer, se digo a um que está errado corro o risco de me indispor e causar mais dissabores a ambos, que estão em via de rompimento. A contenda me faz lembrar o programa da vez, onde todos os participantes se alternam entre diatribes sem muito sentido, atritos que se resolveriam de maneira simples aqui do lado de fora, imagino, sem lembrar que, aqui do lado de fora, os dois amigos se dedicam a essa guerra fria sem fim, atacando-se mutuamen...

A foto

  A mãe enviou hoje pelo WhatsApp a foto do meu avô. É uma novidade para mim, não o conheci, sequer seu rosto eu tinha visto até agora. Eu lhe disse há uma semana que gostaria de vê-lo, se possível. Então ela falou que uma tia com quem não tenho mais contato mantinha fotos antigas da família. É essa foto que tenho agora. Uma imagem extraída do convite para a missa de corpo presente, datada de outubro de 1981, eu tinha um ano quando meu avô morreu. Pergunto por que ele tem um nome diferente do que o que tinha, a mãe explica que o avô decidira adotar o nome da segunda esposa, por isso a discrepância. E acrescenta que ele era “um homem com problemas”, sem se aprofundar no assunto. Tampouco perguntei, não tenho interesse em sua história, ou finjo não ter. O avô tem um rosto feio, de animal, um nariz pronunciado e olhos miúdos, a boca fina na qual reconheço a minha própria. Disse à mãe que lembrava nossos traços, ela se irritou, eu respondi que era brincadeira. Estranho vê-lo e não sent...