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De volta à praia

Voltei à praia e não vi a praia, apenas areia e destroço, cascalho rangendo a cada passo que dava enquanto tentava me aproximar do mar. Era escuro, ia a trabalho, as luzes dos postes mal iluminando quem passava ao lado, a ausência da água mesmo perto da água. Aspirei mais fundo, nada. A paisagem subvertida, o calçadão alargado à força como se aberto ao pouso de um módulo lunar. Estávamos fora, a gravidade mais baixa deixava os movimentos mais lentos. Custávamos a chegar aonde quer que fosse. Um pouco de sonho, mas era real, eu sei. Tinha comigo essa sensação de que acordava e dormia a cada dois segundos, num intercâmbio de mundos, de significações migrantes. Coisas que extrapolavam, excediam, exorbitavam. Dizem que do mar agora se corre porque muito perto já se afunda. É preciso então medir o passo quando se avança porque o risco do afogamento é maior. Não sei se falam a verdade, se exageram, se mentem, eu mesmo não mergulhei ali para saber se cavaram mais do que deviam, é possível que...

A política do barraco

 O que é o barraco senão a política por outros meios? Sua natureza: altercação física e/ou verbal, relação conflituosa cujo desfecho é não raro as vias de fato que, por sua vez, são por si mesmas um mistério.  Afinal, por que se diz “de fato” de algo como as vias, que não admitem uma acepção assim tão preto no branco? Sabe-se lá. Como solução política, portanto, o barraco tem se mostrado cada vez mais frequentemente uma chave resolutiva e, mais importante, catártica, numa teatralização violenta do cotidiano nacional em que os impasses do país se encenam à luz do dia ou da noite, mobilizando as paixões e os atavismos nacionais. Seja nas áreas comuns dos condomínios ou na rua, quando o brasileiro recorre ao expediente mesmo se não esgotadas todas as alternativas à mão: a conversa, o silêncio, a intermediação cautelosa e bem-vinda de outrem, o simples dar de ombros e procurar outro rumo, evitando-se a confrontação odiosa com o semelhante. Não. Saltamos essas etapas e passamos ao ...

Pelejar com dunas

Imagine a cena: a equipe do governo encarregada de tanger a duna de volta pro morro. Cedo, os homens chegam ao local, a areia espalhada na pista. Observam, medem com a vista o tamanho do estrago. Carros derrapando ao passar, mulheres se desequilibrando, meninos respirando areia. Fingem desconcerto. E então se põem a mourejar ao sol, devolvendo ao morro o que sabem que, logo, logo, tornará ao canto de sempre, quando terão de voltar e mais uma vez refazer o desfeito. Para isso são pagos. Mas, ao final, sabem que é como deter a água do mar com um rodo ou impedir a passagem do vento com uma sacola. Um empreendimento de Sísifo. Quis ver poesia no fato de que a duna reocupasse o lugar que é seu, a natureza sempre retomando o controle, impondo-se ao construto e toda essa besteirada que escrevemos para compensar a impotência e disfarçar o fato de que, no frigir dos ovos, perdemos muito e sempre. Porque as dunas pelejam, mas estão derrotadas de antemão, não há dúvida de que, cedo ou tarde, o...

Dunas móveis

Ri ao imaginar a equipe encarregada de tanger a duna de volta pro morro, algo como afastar a água do mar com um rodo ou impedir a passagem do vento com uma sacola. Um empreendimento de Sísifo, e, no entanto, é o que temos visto. Imagine-se o superior ordenando ao auxiliar: encaminhe-se agora mesmo à rodovia tal e varra de lá a areia da praia, de modo a liberar novamente a via construída à margem de uma duna, atravessando um parque, ocupando lugar que não devia, portanto totalmente inadequada. Quis ver poesia no fato de que a duna reocupasse o lugar que é seu, a natureza sempre retomando o controle, impondo-se ao construto e toda essa besteirada que escrevemos para compensar a impotência e disfarçar o fato de que, no frigir dos ovos, perdemos muito e sempre. Há, evidentemente, o ridículo da situação: interpelar a justiça e dela esperar autorização para, daí sim, passar o pano na rua recoberta de areia porque, afinal, é o que faz a areia: espalha-se. É como opera também uma duna móvel: m...

Meu nome é Antonia

Lembro de Antonia em casa indo de um cômodo a outro, inspecionando gavetas e armários, deslizando a ponta dos dedos pela superfície da mesa, uma litania de gestos que se destinavam a um trabalho minucioso de checagem ao fim do qual ela se virava sem avisar e perguntava a quem estivesse por perto: você tem uma identidade? E então dava as costas e retomava essa coreografia doméstica. Levava tardes inteiras assim, simulando acúmulo de tarefas mesmo quando não havia nada para fazer. Apenas quando começava a suar é que ia para o quintal e lá cortava com uma faca os ralos da pia e do chão, liberando o fluxo da água e depois vedando tudo com tufos de sabonete, que ela pressionava com as mãos como massa de modelar. Em seguida, repetia a pergunta: vocês têm uma identidade?, agora dirigida a um coletivo que representava não mais o interlocutor, imaginário ou real, mas a casa, a família, o pai, a mãe, meus irmãos, minha avó e eu, todo o espaço para o qual ela havia se mudado semanas atrás trazida...

História da casa

 Sete meses na casa. Habituei-me a seu ritmo, pensei que fosse mudar, mas mudei eu. Respiro como a casa, levanto e deito a seu modo. Se lhe acontece de adoecer, adoeço também, como no fim de semana em que o liquidificador danificou-se e uma lâmpada queimou, e logo eu caí acometido de sabe-se lá que enfermidade. Tinha febre e vomitava, mas agora estou melhor, a casa está melhor.  Às vezes de madrugada passo pelo corredor e olho para o quarto escuro onde escrevo rodeado de objetos empilhados e me vejo sentado. Eu não levantei, continuo lá, batucando no teclado, parte de mim não se descola da cadeira, parte de mim aderiu à casa e não se move desse espaço doméstico. Respiro a casa, os pulmões se dilatam sincronizados com as cortinas. Se elas esvoaçam, eu expiro, se se encolhem, eu inspiro, e assim meu corpo comunica ao corpo da casa a sua presença. Mais que isso, a sua aderência. Os rangidos da casa coincidem com os sons que produzo dormindo. A casa é grande para os padrões de ou...

Mitomaníaco

Há quem se refira ao presidente como mito, no que estão certos, porque se trata de alguém que mente patologicamente, mente ao natural, mente porque respira e porque tem uma tarefa política: reeleger-se. A mentira, portanto, está assentada num universo cujo centro gravitacional é esse sol fabricado, irreal, em suma, mentiroso, desconectado da realidade. Mitomaníaco. O discurso orbita a mentira, vai lhe dando ares de verdade não por seu conteúdo, flagrantemente inverídico e facilmente desmentido, mas pela performance. Ali está uma pessoa que mente convictamente, um narrador que não é somente inconfiável, é desbragadamente mentiroso e por isso um narrador a quem se dá ouvidos. Não é como se desdobrasse uma historieta em que ali e ali faltassem peças e o seu autor as preenchesse como quer, sem que isso afetasse o pacto de leitura da obra. Ok, sei que houve exagero eventual, o que não compromete a totalidade do que foi apresentado. O presidente procede por outro meio, no entanto. Sua falsif...