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Dunas móveis

Ri ao imaginar a equipe encarregada de tanger a duna de volta pro morro, algo como afastar a água do mar com um rodo ou impedir a passagem do vento com uma sacola. Um empreendimento de Sísifo, e, no entanto, é o que temos visto. Imagine-se o superior ordenando ao auxiliar: encaminhe-se agora mesmo à rodovia tal e varra de lá a areia da praia, de modo a liberar novamente a via construída à margem de uma duna, atravessando um parque, ocupando lugar que não devia, portanto totalmente inadequada. Quis ver poesia no fato de que a duna reocupasse o lugar que é seu, a natureza sempre retomando o controle, impondo-se ao construto e toda essa besteirada que escrevemos para compensar a impotência e disfarçar o fato de que, no frigir dos ovos, perdemos muito e sempre. Há, evidentemente, o ridículo da situação: interpelar a justiça e dela esperar autorização para, daí sim, passar o pano na rua recoberta de areia porque, afinal, é o que faz a areia: espalha-se. É como opera também uma duna móvel: m...

Meu nome é Antonia

Lembro de Antonia em casa indo de um cômodo a outro, inspecionando gavetas e armários, deslizando a ponta dos dedos pela superfície da mesa, uma litania de gestos que se destinavam a um trabalho minucioso de checagem ao fim do qual ela se virava sem avisar e perguntava a quem estivesse por perto: você tem uma identidade? E então dava as costas e retomava essa coreografia doméstica. Levava tardes inteiras assim, simulando acúmulo de tarefas mesmo quando não havia nada para fazer. Apenas quando começava a suar é que ia para o quintal e lá cortava com uma faca os ralos da pia e do chão, liberando o fluxo da água e depois vedando tudo com tufos de sabonete, que ela pressionava com as mãos como massa de modelar. Em seguida, repetia a pergunta: vocês têm uma identidade?, agora dirigida a um coletivo que representava não mais o interlocutor, imaginário ou real, mas a casa, a família, o pai, a mãe, meus irmãos, minha avó e eu, todo o espaço para o qual ela havia se mudado semanas atrás trazida...

História da casa

 Sete meses na casa. Habituei-me a seu ritmo, pensei que fosse mudar, mas mudei eu. Respiro como a casa, levanto e deito a seu modo. Se lhe acontece de adoecer, adoeço também, como no fim de semana em que o liquidificador danificou-se e uma lâmpada queimou, e logo eu caí acometido de sabe-se lá que enfermidade. Tinha febre e vomitava, mas agora estou melhor, a casa está melhor.  Às vezes de madrugada passo pelo corredor e olho para o quarto escuro onde escrevo rodeado de objetos empilhados e me vejo sentado. Eu não levantei, continuo lá, batucando no teclado, parte de mim não se descola da cadeira, parte de mim aderiu à casa e não se move desse espaço doméstico. Respiro a casa, os pulmões se dilatam sincronizados com as cortinas. Se elas esvoaçam, eu expiro, se se encolhem, eu inspiro, e assim meu corpo comunica ao corpo da casa a sua presença. Mais que isso, a sua aderência. Os rangidos da casa coincidem com os sons que produzo dormindo. A casa é grande para os padrões de ou...

Mitomaníaco

Há quem se refira ao presidente como mito, no que estão certos, porque se trata de alguém que mente patologicamente, mente ao natural, mente porque respira e porque tem uma tarefa política: reeleger-se. A mentira, portanto, está assentada num universo cujo centro gravitacional é esse sol fabricado, irreal, em suma, mentiroso, desconectado da realidade. Mitomaníaco. O discurso orbita a mentira, vai lhe dando ares de verdade não por seu conteúdo, flagrantemente inverídico e facilmente desmentido, mas pela performance. Ali está uma pessoa que mente convictamente, um narrador que não é somente inconfiável, é desbragadamente mentiroso e por isso um narrador a quem se dá ouvidos. Não é como se desdobrasse uma historieta em que ali e ali faltassem peças e o seu autor as preenchesse como quer, sem que isso afetasse o pacto de leitura da obra. Ok, sei que houve exagero eventual, o que não compromete a totalidade do que foi apresentado. O presidente procede por outro meio, no entanto. Sua falsif...

Fortaleza novidadeira

Lembro do Gilmar de Carvalho rindo-se na aula, mas um riso contido, mais uma gaiatice típica da gente. Falava do espírito novidadeiro da cidade. Fachadas de cerâmica e vidro temperado, as palmeiras esturricadas enfileiradas no canteiro de alguma nova avenida aberta mês passado.  Levavam de um bairro novo para um mais novo ainda, passando-se antes por um viaduto que homenageava um ex-governador ou ex-senador ou ex-qualquer coisa, finalmente chegando a esse enclave de classe média-alta guarnecido de fora por legiões motorizadas e cães bravos e, de dentro, por sistemas cada vez mais tecnológicos de videocâmeras. Tudo com cheiro de novo, dos nomes aos materiais de revestimento dos estofados nos halls de entrada. O parque requalificado ao qual também se dava o nome de novo. O novo estádio, o novo mercado, o novo ponto de encontro, o novo terminal de ônibus, a nova escola, a nova “ponte velha”. Isso mesmo, porque há duas pontes metálicas, uma velha e outra velhíssima, uma esquecida há ma...

A mãe

A mãe tinha um segredo, não que o escondesse, ela simplesmente tinha, como se possui uma gagueira ou um tique do qual não se tem consciência embora desde cedo esteja ali. Era esse tipo de segredo que tinha a mãe, talvez uma história, uma riqueza particular, uma origem duvidosa, uma abdução, uma face monstruosa sob a doçura dos traços passivos, um terceiro braço que lhe havia crescido imperceptível e que mesmo hoje o disfarçasse tão bem que passara incógnito. Mas estava ali, sob a claridade, à mercê de quem a olhasse mais de perto, coisa que eu costumava fazer naqueles dias tumultuosos que antecederam a saída do pai de casa. Eu tinha 14 anos, talvez um pouco mais, e me sentia surpreendentemente feliz quando o portão bateu e dentro ouvimos o silêncio e no meio do silêncio o oco deixado por ele.

Eu, monetizado

Monetizar a autoimagem, fazer da exposição um ganha-pão, intercambiar essas demonstrações de si e disso obter talvez recurso, cobrando pelo acesso a quê?  Não sei, cada um que escolha aquilo que terá de pôr à venda, já que é algo caro, o mais íntimo, o corpo, o trabalho, dicas de exercício em tempos de pandemia, o aconselhamento, não mais o site, o blog, mas o privado –as horas de sono e o sexo, o beijo e o gozo.  Paga-se pelo que for, são tempos de necessidade e projeção em que esse capital migra do físico para o não-físico, se entendo bem o que se passa agora. Cada um é sua marca, sua empresa, sua mensagem anunciada pela qual é de supor que recebam algo em troca, num escambo contínuo e agora sem fronteiras. Esperava-se sempre que o capitalismo fosse longe, colonizando a Lua e Marte etc., levando a fábrica ao intergaláctico, mas já chegou bem distante, talvez o mais distante que se possa imaginar. Chegou dentro, fundo. Dispensável qualquer convencimento, hoje trabalha-se e mo...