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Fortaleza novidadeira

Lembro do Gilmar de Carvalho rindo-se na aula, mas um riso contido, mais uma gaiatice típica da gente. Falava do espírito novidadeiro da cidade. Fachadas de cerâmica e vidro temperado, as palmeiras esturricadas enfileiradas no canteiro de alguma nova avenida aberta mês passado. 

Levavam de um bairro novo para um mais novo ainda, passando-se antes por um viaduto que homenageava um ex-governador ou ex-senador ou ex-qualquer coisa, finalmente chegando a esse enclave de classe média-alta guarnecido de fora por legiões motorizadas e cães bravos e, de dentro, por sistemas cada vez mais tecnológicos de videocâmeras.

Tudo com cheiro de novo, dos nomes aos materiais de revestimento dos estofados nos halls de entrada.

O parque requalificado ao qual também se dava o nome de novo. O novo estádio, o novo mercado, o novo ponto de encontro, o novo terminal de ônibus, a nova escola, a nova “ponte velha”.

Isso mesmo, porque há duas pontes metálicas, uma velha e outra velhíssima, uma esquecida há mais tempo e outra recém-esquecida, “em obras”, como se diz das intervenções urbanísticas que levam mais de dois ou três anos paradas, ao Deus dará, como o aquário a quem já ofereceram e ninguém quis.

O Gilmar dizia que esse era o “esprit de la ville”, a “joie de vivre” que governava a terra, o ethos da página em branco sobre a qual cada gestor sentia que precisava deixar a sua marca, como um artista deixa a sua, entendendo a cidade como uma obra que atende à demanda sempre crescente de uma atualização cultural-histórica.

Como éramos muito novos, apenas duas gerações de nascidos na cidade, era preciso assegurar uma raiz, ainda que fosse artificial, ou inventar uma tradição, mesmo que postiça.

Talvez por isso os mais antigos tenham apostado no concreto, a exemplo de Juraci e suas paradas mastodônticas ou as pontes estaiadas que não saíram do papel, não por falta de vontade.

Enfim, o legado de cada prefeito-curador ao longo do tempo, sempre atento ao mesmo princípio, se concentrava nessa viga-mestre do pensamento em voga entre os nativos: o novo e suas circunstâncias.

Sofremos de novidadeirismo, os fortalezenses da gema, como o Bartleby de Melville é acometido da patologia do não-fazer, como Oblomov é sintoma do burguês parasitário. Entre nós a Belle Époque nunca saiu de moda.  

Ríamos dessa jequice nas aulas do professor, e era como se o filtro do matuto deslumbrado traduzisse melhor nossos erros e acertos do que anos e anos de filosofia política ou de comunicação. Tudo resumido a gente desfilando a melhor calça no shopping no domingo, como decantou outro grande intérprete da cultura local, o Falcão.

Falo sem travo de amargor, apenas pelo gosto de rir de si mesmo, desse apego excessivo a tudo que é novo e, pior, ao esforço de se recobrir de novidade o que é apenas repetição: a roupa nova pinicando no sovaco dessacraliza o orgulho, o esnobismo, a pose.

Às vezes penso que seja um modo de disfarçar o poder  corrosivo da maresia, uma força até pouco estudada nas artes e na academia. Contra o efeito do tempo que devora e draga, estamos permanentemente inventando o novo (sic), aterrando o já aterrado, refazendo o já feito, de maneira que cada um se sinta autor de uma obra verdadeiramente autêntica, e nunca a mera reprodução.

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