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Dark (parte 3)

E aqui finalmente chegamos a Noah, a grafia hebraica para Noé, outra personagem com referências bíblicas no universo da série Dark , nova aposta da Netflix. Não sabemos muito sobre Noah, apenas que se veste de padre, mas estranhamente não carrega uma bíblia, tampouco usa um crucifixo ou qualquer outro artefato da liturgia católica. Noah exerce um poder sobrenatural sobre outras pessoas. Ele está por trás, por exemplo, do quarto com uma cadeira e beliche por onde passam os garotos que depois serão mortos e descartados, ao que tudo indica não apenas em 1986, mas também em 1953, como os meninos encontrados no terreno ao lado da usina, à época ainda em obras. A pergunta é: quanto de Noé há em Noah? Na bíblia, Noé constrói uma arca para salvar espécies animais e repovoar a Terra após o dilúvio que dura 40 dias e 40 noites, resultado da insatisfação divina com sua própria criação. A rigor, Deus mata todos os seus filhos porque acha que eles não estão se saindo muito bem. Escapa...

Dark (parte 2)

Dark passa-se numa pequena cidade alemã cujos pontos referenciais são uma floresta e uma usina nuclear, que se conectam de modo decisivo ao longo de dez episódios de cerca de 50 minutos. Seus habitantes estão às voltas com o desaparecimento de duas crianças, o que acaba levando a um clima de desconfiança e, por sua vez, ao rompimento de elos estabelecidos muitos anos atrás. O sumiço dos meninos também dá início a uma montagem de quebra-cabeças no qual cada peça não refaz a figura original, mas leva a nova peça, talvez perdida no tempo. É preciso encontrá-la noutro lugar, que não é um aqui , mas um quando . É essa procura, detetivesca mas também filosófica, que o espectador acompanha. Cito um único personagem, Jonas, por entender que se trata de fato do mais importante, embora a série, do início ao fim, faça desfilar mais de uma dezena de rostos, todos com papéis cruciais na cadeia de eventos narrados. Um parêntese: em Dark , é fácil perder o fio da meada. Não se sinta bur...

Dark (parte 1)

Por onde começar? Dark é dual desde o princípio, a gente sabe. Os diretores sabem, os atores e a Netflix também. De modo pouco sutil, a abertura produz essa leitura, com paisagens e personagens dividindo-se e espelhando-se, num efeito de fractal. Tudo se bifurca, e cada divisão conduz a uma narrativa diferente.  Em algum momento, esses caminhos se cruzam, como nas melhores histórias de Italo Calvino. O tempo é um castelo com múltiplos corredores.  Na literatura e no cinema, esse é um tema explorado exaustivamente: o da multiplicidade de veredas. Culpas, passado, tudo esconde uma porta que leva a outro universo, num efeito de mergulho em abismo. Os caminhos percorridos, entretanto, nem sempre são os melhores e mais seguros. A tentação de consertar tudo e colocar as coisas de volta no lugar pode ser nada menos que desastrosa. Uma parte considerável da nossa vida simplesmente resiste a ocupar o seu devido lugar, ora porque não sabemos que lugar é esse, ora porque os...

Variações sobre o mesmo tema

Fico com isso na cabeça de ir me servindo do próprio corpo, de ir afundando as unhas na carne e retirando camadas como se cortasse cebola, de ir mesmo até o sumo e lá deparar com nada, de voltar de mãos abanando porque sempre estive procurando, de estar como o menino a quem a mãe pedia que fosse até a mercearia e trouxesse isso e aquilo e de lá voltava só com a metade dos itens porque a outra metade tinha esquecido no caminho. Por trás disso está toda uma ideia enganosa de essência. Que levamos algo a algum lugar, que passeamos um punhado de noções muito charmosas e decentes a respeito da existência e do amor e de como as coisas se dão nesse intervalo entre vida e morte. Que temos  muita coisa própria, que cada parte de nós fala uma verdade pessoal que expressa exatamente quem somos.  Verdade: não temos nada. Não somos nada. Não testemunhamos nadica de nada, exceto o passar dos dias e a progressiva falência de tudo. Há quem veja nisso certo pessimismo, um gosto e...

Carta do mágico

Dizer no papel, em caneta e traço, é reler vagarosamente cada palavra e esperar que seu peso e sentido criem raízes. Escrevi isso um mês atrás. Era uma quinta, acordara triste e queria dizer o que não sabia, mas digitar era impossível. Então peguei caneta e bloco. Um antigo, enterrado na mochila. E rabisquei umas letras que depois eu mesmo tive dificuldades de entender. Eram garranchos, coisas das quais ia me desfazendo por necessidade, traços que se prolongavam uns nos outros, uns sobre os outros. Uma algaravia, mas era uma algaravia que criava ordem. Acho que os fiz assim exatamente para que não pudesse ler. Eram inteligíveis apenas no instante em que eram ditos.  Queria também que fossem palavras que fundassem outra coisa, outra vida. Palavras que criassem mundos, que instaurassem um tempo, que interrompessem e que inventassem, que fizessem mágica. Mas no fundo eram palavras.  Queria ser o mágico, alguém que deixasse de lado essa condição e passasse a outra, ...

Extraviado

Um homem se perdeu no mar. Entrou, não foi mais visto. Aeronaves sobrevoam, dão rasantes, barcos partem em busca de algo que possa levar a um lugar que não existe. O mar não fixa barreiras. Não se pode dizer que afundou, tampouco que está irremediavelmente perdido. A procura leva horas, amanhã será retomada logo cedo. Estarei dormindo ainda quando um grupo numeroso terá os olhos vidrados nas águas. A foto que estampa a reportagem do jornal é de um fim de tarde.  Noutro lugar, noutra parte, talvez um casal se beije olhando o mesmo mar.  A mesma paisagem repete-se ora como agonia, ora como sereno. Talvez não seja ainda o momento de perguntar quando ele virá. Se virá. E como virá. Inês é morta? Leio a manchete: desaparecido. Mar. Homem. E imediatamente me coloco a reunir sob o mesmo teto o conjunto indistinto de sentimentos que cada uma dessas palavras mobiliza. Um homem extraviado em pleno domingo. Tinha braços e pernas feitos para isso, os músculos meto...

Três palavras

Vi três palavras. Três, sim. Primeiro água, depois dinheiro e finalmente amor. Não sei se valem pela ordem ou se o que importa é o que cada uma significa separadamente, afinal as três encerram um mundo próprio. A vida de um modo diferente a depender de como apareçam. O ideal seria que pudéssemos escolher, mas a verdade é que quase nunca podemos.  Água pode querer dizer tanta coisa, de nascimento a renovação, mudança e mais fluxo na vida, mergulho e flutuação. Enfim, um monte de signo. Com qual fico? Gosto de fluxo. Neste ano vivi muito perto da água. Mergulhei e afundei. Ralei o corpo em pedras, mas também sarei. Gastei a pele com sol. Suei um bocado em travessias de bicicleta, estive no mar mais vezes do que nos outros 36 anos de vida. Foi um ano marinho, escuro mas solar, acidentado mas fluido. Feito o mar. Ora manso, ora arrebentação. Então é possível que essa palavra tenha, sim, alguma importância no ano que vai começar. O mar vai continuar como um elemento de for...