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Uma conversa com H (parte iii)

Mas existir não bastava, e tudo que havia dito até ali sofria de um mesmo mal: eram palavras excessivamente alegóricas, tudo metáfora, nada que dissesse do sentimento o que pudesse haver de raiz, nenhum mineral, nenhum amor como a pedra que afunda, apenas perfumaria e esse jogo impetuoso de expressões com duplo ou triplo sentido, palavras empilhadas que ruíam ao menor tremor de mãos. H escutava e escutava. Depois franziu a testa, olhou pra longe e chorou. Talvez até um choro falso, pensei com alguma crueldade. Apenas a lágrima que é mais uma lembrança da glândula, uma reação do músculo, o corpo que se rebela contra o automatismo. Não o ataque, mas a simulação, não o golpe, mas o prenúncio do golpe e da dor que se seguiria. Então H chorava para que não precisasse chorar depois, numa economia de gesto e afeto que explicava muita coisa. E mesmo que não concordasse, ainda que calasse sobre a imprecisão de tudo que falava e a insuficiência das coisas escritas, mesmo as que aparent...

Uma conversa com H (parte ii)

E de repente revi tudo. E nesse movimento também revi H e todo o processo, do início até o fim. Era importante apanhar as coisas pelo nome, ele mesmo acrescentou, não exatamente compreendê-las, mas saber que estavam ali e que tinham esse rosto, não eram como ideias soltas, não como as coisas sem contorno, umas fantasmagorias. Eram ideias com pé e cabeça e tronco, cheiro e boca, cabelo, costas, dedos e unhas, quadris e ventre. O fato de que as ideias de H tivessem ventre animava ainda mais a conversa, foi só nesse momento que senti: talvez ele chegue aonde quer, a esse ponto indefinido ainda, mas que existe, talvez consiga delimitar e recortar e se aproximar e tocar esse ponto crucial. Os sentimentos não são como animais fantásticos, disse mais uma vez, e era tão comum em tudo que falava a referência a animais, ao que não tem arbítrio, a tudo que é apenas força e ímpeto. Lembrou da expressão usada por Dante quando chega ao inferno: selva selvagem. Era ali que H desejava vi...

Uma conversa com H

Evitei essa conversa com H por muito tempo, seja por que razão for. Mas agora foi difícil escapar, estávamos ambos ali, no mesmo quarto, H com ar cansado e eu disposto a ouvir o que estivesse a fim de dizer porque já não podia correr, eu também farto desse jogo de gato e rato. H, essa letra muda, começou num tom autodepreciativo que não me comoveu nem um pouco. Em seguida desfiou o rosário conhecido de sempre: dores, exaustão, agora dera pra sentir também os ombros e os joelhos, não sabia se somatizava tudo ou se era a idade se impondo com seu cortejo de pequenas falências físicas. Fosse o que fosse, acentuava essa sensação de que atravessava um deserto munido apenas de caneta e papel.   De todo modo é bom cuidar disso, respondi tentando soar o mais empático possível, já que as agonias de H eram também as minhas, suas aflições, dúvidas e vacilações tão próximas de tudo que eu mesmo sentia. Mas, naquele momento, era importante que H entendesse o peso de tudo. E ele entendi...

Borges e o amor

É uma tarefa borgiana, eu disse, e me referia sobretudo a percorrer corredores repletos de lembranças e neles encontrar portas que se abrem para outras portas, que contêm outros corredores e novas portas que dão para jardins vazios, amplos espaços nos quais mal ouvimos o som que produzimos. Uma sucessão de elos que se ligam a outros elos, bibliotecas, livros, portas e janelas, pessoas às voltas com pessoas sem nome nem destino. Alguém que aspira de leve o ar e sente que está perto de encontrar o que procura. Portas sem maçaneta, entreabertas, janelas que não se fecham, bancos e copas de árvores que filtram a luz do sol. A luz coada do sol incidindo obliquamente sobre os cabelos, o vestido amarelo, as mãos postas sobre as pernas. Um universo borgiano é logicamente concebido pela falta de lógica que preside esse raciocínio segundo o qual há um pensamento por trás de cada coisa, cada coisa ocupando um lugar e cada lugar sendo destinado por natureza a uma ideia da qual não te...

O homem na máquina

Penso em desistir da bicicleta e de andar contra o vento e fico surpreso com a facilidade com que abraço essa ideia. Às vezes teorizamos sobre as bravuras, pessoas cuja força as empurra sempre adiante, e deixamos de lado as que, sem temor, recuam, apenas. Ficam pra trás, quedam e se dão por satisfeitas, inventam uma forma de vida no fracasso.  Não é inglório nem vergonhoso. Um castelo de pequenas derrotas também é um castelo. E há mesmo certo conforto na distância. Assumir um lugar longe de si mesmo, manter-se a salvo de tudo que é risco afastando-se o mais possível.  Como um bicho que já não alimenta qualquer ansiedade. Quer somente que os dias passem porque o momento sequer é um momento. O momento agora é feito esse fluxo de um tempo que foi abolido. Um típico platô. Andamos, subimos, descemos e subimos outra vez, uma trajetória extenuante finda a qual atingimos esse ponto aonde chegamos cansados. E agora nos perguntamos o que diabos fomos fazer ali.  Queremos d...

Ocultista

Escreveu no Whatsapp “preciso de um oculista” e o corretor mudou pra ocultista, talvez mais consciente do que de fato precisava, não consertar a vista, os olhos que ardiam e a leitura que vinha se tornando penosa de uns tempos pra cá, mas investir no sobrenatural.  Agora que tudo no plano terreno desandava, achou até simpático que um aplicativo, sempre tão impessoal, sugerisse por meios tortuosos que a razão dos seus problemas não era um defeito dos olhos, mas da alma, e que a resposta estaria logo ali, numa profissional das ciências mágicas. E tudo isso numa sexta-feira 13. Quem sabe fosse mesmo o caso de adivinhar outro sentido no corriqueiro, virar a contrapelo os dias e as horas e neles enxergar uma mensagem criptografada, uma para a qual não tinha o dom de ler, não era alfabetizado nessas artes, cartas de baralho, búzios, borra de café e, a mais recente de que tivera notícia, as pregas no cu. Sim, uma mulher estava fazendo certo sucesso lendo o cu das pessoas e ven...

Grafia

J voltou finalmente de viagem, trouxe um livro e me entregou. Um presente, falou. É um livro seu, assinado por ele, com data e letra caprichosa no canto superior. Penso em minha própria letra cursiva, hoje desfigurada, uma confusão de traços que tenho dificuldade de desatar quando preciso ler anotações que fiz durante a aula ou no meio da rua, para o trabalho. Sou jornalista, vivo de escrever e, por enquanto, não temos à disposição  o expediente   de registrar tudo maquinalmente. Ainda precisamos das mãos e dos blocos de papéis. Não há charme nenhum nisso, eu mesmo cuidaria em largar tudo e apenas ouvir, estar inteiramente concentrado no que o outro me diz, não escrever mas escutar o que me contam. E depois voltar pra casa repleto de histórias que guardaria pra mim. Sem essa intromissão da letra, da minha própria grafia misturando-se ao que é alheio. Por isso não escrevo mais o nome nos livros que compro ou ganho. Se ponho as letras lá, então é meu e o que sou at...