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Borges e o amor

É uma tarefa borgiana, eu disse, e me referia sobretudo a percorrer corredores repletos de lembranças e neles encontrar portas que se abrem para outras portas, que contêm outros corredores e novas portas que dão para jardins vazios, amplos espaços nos quais mal ouvimos o som que produzimos. Uma sucessão de elos que se ligam a outros elos, bibliotecas, livros, portas e janelas, pessoas às voltas com pessoas sem nome nem destino. Alguém que aspira de leve o ar e sente que está perto de encontrar o que procura. Portas sem maçaneta, entreabertas, janelas que não se fecham, bancos e copas de árvores que filtram a luz do sol. A luz coada do sol incidindo obliquamente sobre os cabelos, o vestido amarelo, as mãos postas sobre as pernas. Um universo borgiano é logicamente concebido pela falta de lógica que preside esse raciocínio segundo o qual há um pensamento por trás de cada coisa, cada coisa ocupando um lugar e cada lugar sendo destinado por natureza a uma ideia da qual não te...

O homem na máquina

Penso em desistir da bicicleta e de andar contra o vento e fico surpreso com a facilidade com que abraço essa ideia. Às vezes teorizamos sobre as bravuras, pessoas cuja força as empurra sempre adiante, e deixamos de lado as que, sem temor, recuam, apenas. Ficam pra trás, quedam e se dão por satisfeitas, inventam uma forma de vida no fracasso.  Não é inglório nem vergonhoso. Um castelo de pequenas derrotas também é um castelo. E há mesmo certo conforto na distância. Assumir um lugar longe de si mesmo, manter-se a salvo de tudo que é risco afastando-se o mais possível.  Como um bicho que já não alimenta qualquer ansiedade. Quer somente que os dias passem porque o momento sequer é um momento. O momento agora é feito esse fluxo de um tempo que foi abolido. Um típico platô. Andamos, subimos, descemos e subimos outra vez, uma trajetória extenuante finda a qual atingimos esse ponto aonde chegamos cansados. E agora nos perguntamos o que diabos fomos fazer ali.  Queremos d...

Ocultista

Escreveu no Whatsapp “preciso de um oculista” e o corretor mudou pra ocultista, talvez mais consciente do que de fato precisava, não consertar a vista, os olhos que ardiam e a leitura que vinha se tornando penosa de uns tempos pra cá, mas investir no sobrenatural.  Agora que tudo no plano terreno desandava, achou até simpático que um aplicativo, sempre tão impessoal, sugerisse por meios tortuosos que a razão dos seus problemas não era um defeito dos olhos, mas da alma, e que a resposta estaria logo ali, numa profissional das ciências mágicas. E tudo isso numa sexta-feira 13. Quem sabe fosse mesmo o caso de adivinhar outro sentido no corriqueiro, virar a contrapelo os dias e as horas e neles enxergar uma mensagem criptografada, uma para a qual não tinha o dom de ler, não era alfabetizado nessas artes, cartas de baralho, búzios, borra de café e, a mais recente de que tivera notícia, as pregas no cu. Sim, uma mulher estava fazendo certo sucesso lendo o cu das pessoas e ven...

Grafia

J voltou finalmente de viagem, trouxe um livro e me entregou. Um presente, falou. É um livro seu, assinado por ele, com data e letra caprichosa no canto superior. Penso em minha própria letra cursiva, hoje desfigurada, uma confusão de traços que tenho dificuldade de desatar quando preciso ler anotações que fiz durante a aula ou no meio da rua, para o trabalho. Sou jornalista, vivo de escrever e, por enquanto, não temos à disposição  o expediente   de registrar tudo maquinalmente. Ainda precisamos das mãos e dos blocos de papéis. Não há charme nenhum nisso, eu mesmo cuidaria em largar tudo e apenas ouvir, estar inteiramente concentrado no que o outro me diz, não escrever mas escutar o que me contam. E depois voltar pra casa repleto de histórias que guardaria pra mim. Sem essa intromissão da letra, da minha própria grafia misturando-se ao que é alheio. Por isso não escrevo mais o nome nos livros que compro ou ganho. Se ponho as letras lá, então é meu e o que sou at...

A dúvida de K

K está do outro lado do país, num lugar mais frio, cinza, essas temperaturas que deixam o céu amuado e o humor oscilando junto com os termômetros. Ora feliz, ora triste, pensa em voltar, mas quando volta imediatamente se coloca numa posição de cansaço, sem disfarçar o desgosto, uma sensação de que perde tempo e vida, duas coisas que não se perdem mais, sobretudo agora, sobretudo hoje. Falo que em Fortaleza choveu pela manhã, uma chuva fina, triste principalmente porque na véspera do feriado, triste também porque agora e não ontem ou antes de ontem, quando os seus efeitos teriam sido atenuados por notícias alegres, o irmão que estuda, a irmã que está grávida, o livro que avança, sabe-se deus pra onde, mas o fato é que avança e ganha esses contornos próprios que as histórias resolvem assumir quando já não estão mais sozinhas. K festeja a chuva, fala que sente saudade, diz que quer ler mais sobre a água na sua cidade. Depois admite que gosta do que faço. E se cala. Eu ma...

Transparência e obstáculo

Por razões que são como dunas móveis, ou seja, nunca entendemos direito por que começam nem aonde vão parar, um livro do Starobinski caiu nas minhas mãos. Precisava falar sobre melancolia não apenas porque me sentisse melancólico, como tenho de fato me sentido. Motivos pessoais e acadêmicos, nunca apenas uma coisa, nunca só interesse em pesquisar, mas também a raiz primitiva de algum sentimento mal resolvido alargando as fronteiras. Daí até a melancolia e ao autor, de quem fui pescando títulos e espiando as palavras. Agora também outro livro do mesmo Starobinski chega por vias tortas, um no qual trata de Rousseau. Logo ele, Rousseau, e logo agora, Rousseau. Uma ediçãozinha de bolso, na capa um homem sozinho com uma bengala e umas flores. Para quem as flores? Para onde vai o homem? De partida, está escancarada a solidão como condição na qual precisamos estar para contar o que seja, mas da qual fugimos em busca do que seja. O movimento sanfonado: ir e voltar, num quebra-mar s...

Um encontro com L

Agora foi diferente, eu procurei L e propus que retomássemos de onde havíamos parado, ou seja, do ponto inexato em que as coisas perderam o eixo e no qual já não sabíamos mais o que éramos, se amigos ou confidentes ou pessoas interessadas remotamente um no outro mas que permaneciam ali a despeito de tudo. Permanecer quando tudo o mais aponta pra longe, ficar quando tudo sugere ir embora, insistir porque nenhum outro movimento é desejável. É um desses mistérios que eu achava que só encontraria nos livros e nos filmes, mas o fato é que ele pode suceder a qualquer um de nós, que acordamos cedo e levantamos da cama com ressaca e vamos ao supermercado e esperamos na fila do consultório ou machucamos o mindinho na quina da parede. Foi o que disse a L quando a conversa parecia encerrada e nós dois já não tínhamos mais nada a oferecer um ao outro. Foi só nesse momento que pude expressar claramente que algo me impedia de ir. Algo sem rosto, sem forma, um sentimento talvez, um apego a ...