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A dúvida de K

K está do outro lado do país, num lugar mais frio, cinza, essas temperaturas que deixam o céu amuado e o humor oscilando junto com os termômetros.

Ora feliz, ora triste, pensa em voltar, mas quando volta imediatamente se coloca numa posição de cansaço, sem disfarçar o desgosto, uma sensação de que perde tempo e vida, duas coisas que não se perdem mais, sobretudo agora, sobretudo hoje.

Falo que em Fortaleza choveu pela manhã, uma chuva fina, triste principalmente porque na véspera do feriado, triste também porque agora e não ontem ou antes de ontem, quando os seus efeitos teriam sido atenuados por notícias alegres, o irmão que estuda, a irmã que está grávida, o livro que avança, sabe-se deus pra onde, mas o fato é que avança e ganha esses contornos próprios que as histórias resolvem assumir quando já não estão mais sozinhas.

K festeja a chuva, fala que sente saudade, diz que quer ler mais sobre a água na sua cidade. Depois admite que gosta do que faço. E se cala.

Eu maldigo a chuva, hoje queria céu claro porque estou sombreado, encoberto, olho no espelho e o rosto é todo uma mancha, uma nódoa. Repito o mesmo meia hora depois e continuo assim, nublado, não há o que fazer, exceto esperar. Como esperamos que o tempo melhore ainda que nada no horizonte sugira uma mudança.

Chuva fina é infelicidade, melancolia. Queria outro céu agora, digo para K. Queria afastar essas nuvens e permitir que só fizesse sol por um ano inteiro, que nada molhasse, que o chão secasse até crestar o corpo, que ficaria como essas lavouras imprestáveis pra nada, apenas rachaduras entre as quais nascem quando muito uns brotos franzinos que não produzem fruto algum. Queria estiagem. 

É solidão, K devolve. Aqui também há muito disso. 

Em seguida falamos sobre música e sorvete e bicicleta, ela diz que tem saído bem pouco, quase nunca, apenas pra pedalar mas só de vez em quando. Eu falo que uma hora dessas todo bicho carece de espiar o mundo lá fora e talvez até se alegre com o que veja, talvez até descubra que as coisas não são totalmente como achamos que são. 

Logo um novo silêncio.

A chuva parou, corto o ar. Agora faz sol, e como é bonito o azul assim atravessado de tanta luz. K sente falta do mar, das coisas mais corriqueiras que cercam o mar, da própria ideia de haver um mar ao qual nos agarramos sempre que o chão falseia. Quando foi embora achou que não sentiria essa dor, mas foi só atingir as lonjuras para que pusesse a mão no bolso da calça e de lá tirasse um punhado de areia. 

Antes fossem cartas, ainda que doloridas, mas era só areia. 

E acentua a falta com uma vogal prolongada, que produz um eco mesmo sem a fisicalidade da voz. A gente é feito disso e nem sabe, feito de mar e terra e desse sol abrasador. E temos saudade do que está perto mas nunca levamos com a gente. Tenho essa lacuna, sinto que preciso voltar de tempos em tempos pra olhar e depois decidir o que fazer da vida. 

É o caso agora?

K não responde. 

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