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Transparência e obstáculo

Por razões que são como dunas móveis, ou seja, nunca entendemos direito por que começam nem aonde vão parar, um livro do Starobinski caiu nas minhas mãos. Precisava falar sobre melancolia não apenas porque me sentisse melancólico, como tenho de fato me sentido.

Motivos pessoais e acadêmicos, nunca apenas uma coisa, nunca só interesse em pesquisar, mas também a raiz primitiva de algum sentimento mal resolvido alargando as fronteiras. Daí até a melancolia e ao autor, de quem fui pescando títulos e espiando as palavras.

Agora também outro livro do mesmo Starobinski chega por vias tortas, um no qual trata de Rousseau. Logo ele, Rousseau, e logo agora, Rousseau. Uma ediçãozinha de bolso, na capa um homem sozinho com uma bengala e umas flores. Para quem as flores? Para onde vai o homem?

De partida, está escancarada a solidão como condição na qual precisamos estar para contar o que seja, mas da qual fugimos em busca do que seja. O movimento sanfonado: ir e voltar, num quebra-mar sem fim. Contar como um exercício duplo: renúncia e afirmação. Conto para fixar o perdido, conto porque reafirmo o perdido. 

Estremeço, rio de nervoso, deixo o livro sobre a mesa, ameaço devolver, me afasto como quem se defende dos objetos que cegam e ardem ainda. E me pergunto se o diabo brinca com a gente, se funcionamos como marionete, se um titereiro maluco vive às custas da nossa agonia.

O livro tem uma espécie de subtítulo: a transparência e o obstáculo. A sensação de chiaroscuro se acentua. 

Eu gosto das duas palavras, gosto de saber que a transparência é um modo de atravessar a vida, mas que obstáculos (a própria linguagem, por exemplo) nos colocam em situação de desgoverno. A linguagem é, em medida extrema, essencialmente paixão porque ocupa-se dos nomes das coisas que nos cercam. Não apenas: linguagem é significar o de dentro, essa "confusão de pensamentos", como li recentemente. 

Transparecer e ruir, transparecer e arruinar. Há transparência depois da ruína? E ruína na transparência? É possível refazer uma vida estragada por falta de transparência? É possível narrar a vida depois da ruína? 

Não abri sequer uma página. Medo, talvez. Percorri o índice entre aflito e curioso. Tudo saltando, tudo vivo, tudo em brasa. A exata natureza das coisas que permanecem desafia a lógica segundo a qual tentamos lhes dar nomes. Reuni-las sob um conjunto de características. Oferecê-las como um animal conhecido, domesticado. Vejam, este é o animal amor. É dócil e feliz, tranquilo como um domingo no parque. Aquele, o animal abandono. Obediente, um pouco triste até. 

Deixamos pra trás as coisas sem nome. Deixamos para que morram. Entregamos ao abismo do obstáculo, o lugar que nos recusamos a atravessar, seja por medo, seja por fraqueza. Contamos a narrativa possível, essa feita de palavras e sentimentos reconhecíveis. 

No fundo, acho que estou diante de um animal assim. Inapreensível. 

Pra quem quer discutir a própria vida em narração ou a narração da vida, Starobinski escreveu um ótimo livro para entender de que modo essas duas esferas - vida e obra - se tangenciam e comunicam. Eu indico, portanto. 

Apesar do nome: Rousseau. Logo ele, logo agora, me apanhando no contrapé como um goleiro que procurasse as arquibancadas à procura de um rosto e, ao voltar novamente a vista ao jogo em disputa, encontrasse a bola já dentro das redes. Não o leitor que vai ao encontro da obra, mas a obra que encontra o leitor. 

Starobinski também vem a calhar se quiserem entender melhor a tinta escura da melancolia, um sentimento viscoso que enegrece – mais que isso, acinzenta – um dia tão solar quanto uma segunda-feira. Ou uma terça.

Quando há pouco de transparência e muito de obstáculo em cada hora que não passa.  

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