Pular para o conteúdo principal

Postagens

Transparência e obstáculo

Por razões que são como dunas móveis, ou seja, nunca entendemos direito por que começam nem aonde vão parar, um livro do Starobinski caiu nas minhas mãos. Precisava falar sobre melancolia não apenas porque me sentisse melancólico, como tenho de fato me sentido. Motivos pessoais e acadêmicos, nunca apenas uma coisa, nunca só interesse em pesquisar, mas também a raiz primitiva de algum sentimento mal resolvido alargando as fronteiras. Daí até a melancolia e ao autor, de quem fui pescando títulos e espiando as palavras. Agora também outro livro do mesmo Starobinski chega por vias tortas, um no qual trata de Rousseau. Logo ele, Rousseau, e logo agora, Rousseau. Uma ediçãozinha de bolso, na capa um homem sozinho com uma bengala e umas flores. Para quem as flores? Para onde vai o homem? De partida, está escancarada a solidão como condição na qual precisamos estar para contar o que seja, mas da qual fugimos em busca do que seja. O movimento sanfonado: ir e voltar, num quebra-mar s...

Um encontro com L

Agora foi diferente, eu procurei L e propus que retomássemos de onde havíamos parado, ou seja, do ponto inexato em que as coisas perderam o eixo e no qual já não sabíamos mais o que éramos, se amigos ou confidentes ou pessoas interessadas remotamente um no outro mas que permaneciam ali a despeito de tudo. Permanecer quando tudo o mais aponta pra longe, ficar quando tudo sugere ir embora, insistir porque nenhum outro movimento é desejável. É um desses mistérios que eu achava que só encontraria nos livros e nos filmes, mas o fato é que ele pode suceder a qualquer um de nós, que acordamos cedo e levantamos da cama com ressaca e vamos ao supermercado e esperamos na fila do consultório ou machucamos o mindinho na quina da parede. Foi o que disse a L quando a conversa parecia encerrada e nós dois já não tínhamos mais nada a oferecer um ao outro. Foi só nesse momento que pude expressar claramente que algo me impedia de ir. Algo sem rosto, sem forma, um sentimento talvez, um apego a ...

Mutilados

Disse que morderia e de fato mordeu. Restou essa marca com a qual ela não saberia bem como lidar no dia seguinte. Disfarçou com pó e um lenço ao pescoço, mas em casa, sozinha, orgulhava-se diante do espelho. Uma marca, finalmente. Não abriria mão. Uma primeira marca que não era de nascença, tampouco de acidente como a que levava no dorso da mão esquerda.  Mordeu mais vez uma vez, agora sem avisar. No braço e depois na bunda, duas arcadas afundando na carne branca com precisão. Podia adivinhar o desenho irregular dos dentes apenas olhando pra elas. Os caninos mais pontiagudos que o normal porque desde criança os de cima não encaixavam nos de baixo. Como não havia fricção, tinham ficado assim, amolados, perfurantes, dentes como de cachorro e não como os de gente. Um dia foi a vez dela. Machucou o lóbulo da orelha, ele protestou. Então pediu que parasse, mas logo foi o peito. Deixou uma área roxa que depois esverdeou até se perder, uma vaga mancha cinza que poderia ser qualq...

Comer corações

Tente. É um exercício. Separe corações, um de cada lado da mesa. Em seguida olhe e escolha, revolva, corte em fatias bem finas ou grossas, tanto faz. Comer corações aos bocados ou de uma vez só.  O mais vermelho talvez seja suculento, o mais seco nem sempre é o mais duro. Há corações de todo tipo e tamanhos, gostos e texturas. Corações amargos e doces como os clichês dos romances água com açúcar. Corações salgados, corações gordurosos e apenas músculo. Escolher é talvez a parte mais divertida. Percorrer as prateleiras dos supermercados à procura, passar a vista por rótulos, procurar nas entrelinhas de cada coração os materiais de que é feito, se têm excesso de fibras, se causam câncer, se podem levar à morte por asfixia. Corações indigestos.  Uma variedade impressionante de corações dispostos em fileira ao lado da banquinha de doces, pouco depois do setor de frios. A gente acha que nunca vai encontrar mas encontra. Aquele, por exemplo, afundado no peito magro, p...

Fuga

Há um mês fiz como Dante e mergulhei no inferno de onde não saí rumo ao paraíso pelas mãos de nenhuma Beatriz. Fui e voltei por minha conta, mas o fato é que gostei do inferno. É o que se pode chamar de lugar bacana. Sua circularidade, suas almas eternamente condenadas, as figuras de proa da cultura atiradas mais por vaidade e crimes de menor potencial danoso que por qualquer outra coisa, o aspecto geométrico, as animadas conversações, os grupos, sua geografia montanhosa, os lagos, os barqueiros, as almas diariamente mergulhadas em agonia. Por tudo isso acreditei que o inferno é uma festa, as mentes mais brilhantes estão lá, seus dias não se parecem, ao contrário do paraíso, um festival de carolices retroalimentando-se continuamente, umas horas que se passam como gato preguiçoso estirando-se no parapeito da janela, uns domingos assim sem gosto, uns sábados em celebrações harmoniosas no curso dos quais o único sobressalto é descobrir que horas as crianças poderão dormir. A...

Uma conversa com J

Um amigo escreve de Amsterdã. Está lá há três dias. Seu nome é J, é homem e casado, passa férias sozinho pela Europa. Apenas ontem me mandou mensagem dizendo que não sabia o que fazer. No dia anterior conhecera um grupo de turistas macedônios. E um deles lhe interessara. Um mais jovem, mas não tão jovem, talvez 30 anos, cabelos já começando a ficar grisalhos em alguns pontos, braços fortes, costeletas, um risinho bobo de quem desconfia sempre do que quer que lhe digam.   Então gostou dele, disse assim mesmo, de súbito. Um jato sem culpa: estava gostando e gostou. Foi em frente. Convidou o rapaz pra sair, deram uma volta pela cidade, beberam café e depois cerveja. Eu não conheço Amsterdã. Brinquei que agora poderiam se ver sempre, se fosse o caso, porque os voos seriam mais frequentes saindo diretamente da cidade a partir do ano que vem. Um aeroporto ligando a capital até o mundo, criando mais laços com o continente. Se somos uma esquina, como gostam de dizer as autori...

Uma conversa com L (final)

Começo pelo fim: L termina sua última carta perguntando. É uma pergunta simples mas incisiva: é isto um impasse? Não sei o que responder, L jamais havia falado tão claramente nesses termos, sempre intuí que imaginasse uma saída pra tudo, que tivesse respostas. Mas estava enganado, e não temos nada agora a dizer. Sim, é um impasse. E fico a pensar na natureza resoluta das coisas que não se resolvem, uma dureza diante do maleável da existência, mesmo tempo e espaço dobráveis e, no entanto, há toda uma família de afetos e eventos cuja matéria é feita precisamente disto: impasse. L tem razão, estamos em encruzilhada. E o que se faz quando assumimos essa postura de não sabermos o passo seguinte, de pararmos e tentarmos adivinhar o que virá pela frente, de irmos adiante mais por intuição que por vontade? Era um impasse, e tampouco o reconhecimento da falta de resposta era uma resposta, o vazio acentuava o vazio, o silêncio multiplicava o silêncio e assim por diante. For...