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Uma conversa com L

L me procurou pra dizer o que sente e foi bastante franca e clara, duas coisas que não consigo ser. Disse que está passando por uma revisão. Embora não tenha especificado de que tipo, pude deduzir que se trata de uma avaliação afetiva, em princípio, mas que se expande e chega ao mais fundo do que é, do que quereria ser talvez. Conheço L há cinco anos e nunca nos vimos mais que duas vezes, uma delas de passagem, quando nos cumprimentamos e ela falou sobre como a vida tinha andado até aquele ponto. No entanto, conversamos diariamente por carta e também por telefone, além de nos falarmos eventualmente nos bate-papos virtuais. Horas de conversa no curso das quais tratamos sempre de nos pormos a nu. L quer fazer crer que está reduzida a poucas coordenadas, que a vida de certo modo desestruturou-se, o que não consigo entender de todo. Será que se refere ao casamento ou ao trabalho somente? À saúde? Afinal, a certa altura começamos a falhar, e L já entra na casa dos 30 anos, tem rot...

Erosão

Enquanto pedia pra fechar as cortinas expliquei que tinha sensibilidade à luz, que sempre escolhia a penumbra, que sentava na mesa do café da livraria e dizia imediatamente à atendente que desligasse a lâmpada, assim ficaria melhor.  Isso mesmo, sem esse foco de luminosidade apontado pro meu rosto, depois um café e em seguida a conta, as outras mesas ocupadas por um homem digitando no computador, uma mulher à espera, um homem olhando pro relógio de tempos em tempos, alguém dando lições de inglês para três estudantes, um gerente explicando noções de atendimento a uma jovem, uma senhora de cabelos brancos curtos e olhos claros voltados diretamente pra mim como se adivinhasse as razões pelas quais tinha acabado de pedir que desligassem a luz. E então o quarto escureceu e eu rolei pro lado e nos abraçamos, rostos agora ajustando-se à falta de luz. Mas e quando sai de bicicleta? É o único momento do dia, acho que faço de propósito, muita luz, muito sol, o mar, tudo é exc...

Mãe Jussara

Tenho um recorte de jornal nas mãos, mas não sei o que fazer com ele. É um pedaço da Mãe Jussara, um trecho de aconselhamento amoroso, gênero clássico nos folhetins. Nele a cartomante, não sei se posso chamar assim, sugere a uma mulher que encare o fim do relacionamento com naturalidade. E conclui: você ainda será muito feliz. Não recomenda consulta a astros, tampouco receita mandingas para trazer o homem de volta à casa. Apenas joga a real: o amor acabou. Seja corajosa e mude tudo ao seu redor. Não há como recuperar o que foi perdido. Será melhor assim. E fim de papo. Eu não costumo guardar papéis, sequer minhas colunas guardo mais. Vão todas pro lixo, todas acumuladas em pilhas no quarto dos fundos que depois serão recolhidas pelo porteiro da noite e entregues a um catador de material reciclável. Mas esse pedaço eu guardei. Estava dobrado como um recadinho enviado por alguém do futuro. Na minha estante, atrás de um livro, perto de um Pynchon e de ‘Nossas noites’, conven...

Fim adiado

Sobrevivemos. O mundo não acabou. Continuamos aqui exatamente como antes, acordamos e dormimos e o mundo permaneceu ou nós permanecemos nele enquanto tudo se esgota às prestações. De uma forma ou de outra, não houve esse fim teatral, o encerramento abrupto das atividades, a suspensão irrevogável da vida como a conhecemos nos filmes. Houve o dia seguinte, e talvez essa seja a maneira mais cruel de dizer que termina. O dia posterior, com seus ritos de normalização. Depois do fim, eu acordei e pus café na xícara e recebi dois pacotes pelos Correios. Abri esses pacotes. Eram livros. Quatro. Todos queridos, todos adiáveis, livros sobre os quais pretendo falar em algum momento, mas não livros urgentes. Ou talvez não sejam urgentes apenas agora, quando olho pra vida e ela perde ênfase. A vida sem ênfase. Como num poema ao contrário, triste das coisas consideradas sem importância ou algo parecido. Acho que foi Drummond que falou isso. O fato é que precisamente essa famíli...

Antes que o mundo acabe

Conto uma história pra terminar antes que o mundo termine. Quando estive em casa pela última vez, talvez em inícios de setembro ou fins de agosto, fizemos algo curioso. Batemos num saco de boxe. Calcei luvas e me pus em posição de pugilato.  Precisava esmurrar o saco, que não revida, apenas recebe as pancadas e balança levemente, a depender da intensidade e da frequência dos golpes com que é atingido. Estive assim por cerca de 15 minutos, primeiro sozinho, depois acompanhado por meu irmão e meu pai, ambos lutadores amadores, mais amadores que lutadores, exceto por meu irmão, que realmente pode se considerar um cara que aplicaria uma boa surra em qualquer pessoa na rua se quisesse de fato. Mas ele é um sujeito manso, muito mais manso que eu, por exemplo. Eu me divertia batendo, e não apenas por bater, mas por fazer isso na frente dos dois, que me olhavam e davam risinhos irônicos do tipo "veja como bate no saco". Então fui aumentando a força e a frequência, relem...

Esperando Margot

Tenho a esperança vã, porém, de que se procurar lá no fundo vou descobrir o que não quero porque isso diz respeito ao que sou agora, este que escreve sobre as histórias que talvez ouça na rua. Gente que não conheço, gente passando, gente como as gentes da minha família, soltas e sozinhas, solitárias ou acompanhadas, como o pai, a mãe, o irmão, a irmã. Eu mesmo tenho olhado no espelho e me perguntado o que diabos se reflete ali, um estranhamento que por vezes confundo com crise etária, um abismo dos 40 anos que vai chegando, um outro dos 30 que ficou pra trás, a vida que bate à porta e interroga se pode entrar. A sensação invariável de que algo se perde e se ganha silenciosamente, quando damos tudo por encerrado, como esse cliente atrasado que chega ao bar com as portas prestes a fechar. Mas o reflexo é enganoso, não responde. É apenas imagem, e as coisas de verdade acontecem longe dali. Acontecem na rua e no quarto, as sínteses do mundo público e privado. Na rua tenho ...

Fora dos trilhos

Mesmo esse recuo, porém, é limitado, andamos e procuramos e não encontramos, seja porque não está lá, seja porque nunca esteve. Não adianta nada, então, que pergunte sobre meu avô, como eram suas maneiras, de que lado da cama dormia, se se sentia triste num domingo de manhã ou na tarde de sábado ou prestes a fazer qualquer coisa que tinha por obrigação fazer. Essa prospecção é inútil, tendo a achar, não leva ninguém a lugar nenhum. Juntamos cacos numa baciada e depois fazemos como os mineradores que separam mercúrio do que tem valia. Mas tudo e nada tem valia, tudo se mistura nesse mergulho da memória. Tenho pouco de mim nos outros da família e menos ainda quando pergunto. O pai mesmo é um mistério, nunca sei se está feliz ou triste e mais que isso seria intrometer-me num campo que talvez me traga sofrimento, por isso jamais experimentamos esse tipo de conversa franca em torno da qual os membros de uma família constroem seus laços mais firmes. Conosco as coisas são de uma...