Pular para o conteúdo principal

Uma conversa com L

L me procurou pra dizer o que sente e foi bastante franca e clara, duas coisas que não consigo ser. Disse que está passando por uma revisão. Embora não tenha especificado de que tipo, pude deduzir que se trata de uma avaliação afetiva, em princípio, mas que se expande e chega ao mais fundo do que é, do que quereria ser talvez.

Conheço L há cinco anos e nunca nos vimos mais que duas vezes, uma delas de passagem, quando nos cumprimentamos e ela falou sobre como a vida tinha andado até aquele ponto. No entanto, conversamos diariamente por carta e também por telefone, além de nos falarmos eventualmente nos bate-papos virtuais. Horas de conversa no curso das quais tratamos sempre de nos pormos a nu.

L quer fazer crer que está reduzida a poucas coordenadas, que a vida de certo modo desestruturou-se, o que não consigo entender de todo. Será que se refere ao casamento ou ao trabalho somente? À saúde? Afinal, a certa altura começamos a falhar, e L já entra na casa dos 30 anos, tem rotina boêmia, fuma e pratica poucas atividades físicas. Somos parecidos em muito, nas enfermidades da alma e do corpo.

Respondo que três pilares sustentam o homem e a mulher: afeto, trabalho e, claro, o corpo. Excetuando-se dois, resta obviamente o último. Se pelo menos um dos três vai bem, as coisas não estão totalmente perdidas. Se apenas um claudica, trata-se de chorar de barriga cheia, um incômodo de que fala brilhantemente Lydia Davis num dos contos do seu livro novo. Parafraseando: eu estou bem, mas poderia estar um pouquinho melhor.  

Exemplo: o trabalho anda mal, mas afeto e corpo compensam. Nisso há que investir e ter paciência, planejar e executar, essas coisas que experts nos vendem e cobram caro por isso. Não é o que L quer escutar, eu sei , e posso até imaginá-la agora franzindo o cenho ou rindo de nervoso com mais um parágrafo que não chega a termo.

Mas já chego ao fim, e, no fim, ao que quero dizer, se é que já não me perdi totalmente e agora apenas dou voltas, tentando enxergar e resolver não os seus problemas, mas os meus, que, como disse, são parecidos.

De modo que, quando falo dela, falo de mim também.

L usa expressamente a palavra revisar. Revisar a vida, como se adotasse postura de quem, achando-se a meio caminho de qualquer coisa, resolve examinar o percurso feito até ali. E não se agrada do que encontra, seja porque desviou-se do que desejava, seja porque o que desejava não coincide com o que quer agora.

Numa viagem os medos conduzem-nos a lugares que às vezes confundimos com desejo e vice-versa: o desejo leva-nos ao medo. Num deslocamento, tanto os medos quanto os desejos mudam constantemente.

Agora, por exemplo, tento entender a extensão do que L quer dizer com revisão. Se vai a fundo, se se detém na representação que fazem de si mesma, se escarafuncha essas máscaras, se se mostra diversa do que tem sido habitualmente, se acha que esteve longe de si durante todo esse tempo.

Em resumo, se foi outra ou ela mesma. E, sendo outra, que outra foi. E, se foi mesmo ela, se de fato está contente em ter sido a própria L e não uma outra. Ou se, última hipótese, oscilou entre personalidades intercambiáveis.

É um exercício cansativo esse de ver-se a si próprio com olhos de terceiros e tentar descobrir se se encaixa ou não nessa visada. Eu mesmo destoo do que falam de mim, sendo bem ou mal. Eu mesmo me assusto com o que o descubro em contraste com o que os outros são.

E tenho descoberto a custo que sou meu próprio abismo. Talvez seja isso que L esteja descobrindo agora, que é seu próprio fosso, que afunda nele toda vez que acredita estar em distância segura do que supôs que seria, do que tentou fugir.

Em que estágio estará L nesse processo de descarnar-se?

Eu não sei ainda.

Talvez nos falemos mais tarde, quando ela poderá me dizer em que pé as coisas estão neste momento da vida. Se encontrou uma barata e a devorou porque precisava entender de que matéria são feitos os bichos para que ela mesma compreendesse a matéria de que é feita. Afinal, é esse o fundamento da paixão, imiscuir-se e perder-se. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d