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Engolir furacões

Antes de dormir, depois do fim do mundo, pensei que morreria se os furacões chegassem ao Ceará e os ventos de 260 km/h atingissem o prédio velho onde moro. É uma construção de trinta anos com pequenas rachaduras aqui e ali, ainda muito firme mas não o bastante pra que eu pegue no sono sem me preocupar com a queda. Então fiquei olhando o celular e no celular vi uma imagem de três olhos se formando no mar do Caribe. Eles andavam em direção contrária à nossa, quer dizer, subiam rumo aos EUA, deixando a gente pra trás, isso se levarmos essa história de orientação dos mapas a sério. Mas e se um deles quisesse voltar, se um desistisse, se um se atrevesse a surpreender, se entendesse que, para se diferenciar, o melhor seria devastar uma região cuja população jamais sonharia em ser acordada por rajadas furiosas às seis da manhã? Foi pensando nisso que adormeci, foi pensando no fim do mundo e em todo o fim possível, o fim da vida, o fim da cerveja, o fim do cigarro e dos livro...

O problema

O homem liga, agora parece resolvido a tratar do problema de forma direta. Carlos, temos um problema. Estou vendo que sim. Sem dúvida que temos um problema e vamos resolvê-lo. Henrique, por favor. Carlos, quer que o chame de Henrique? Como queira. Henrique será. É que gosto de Carlos porque é o nome do meu pai e também o de meu filho, mas Henrique também é um bom nome. ... Carlos Henrique, vejo que o senhor está sem conexão externa, sinto que algo afetou a maneira como recebia e dava notícias de si ao mundo, então esta ligação tem o intuito de reparar qualquer tipo de obstáculo que esteja porventura atrapalhando esse diálogo entre o senhor e o lado de fora da sua casa, compreendido? Quero apenas restabelecer a internet. Foi pra isso que liguei. Carlos, é possível que algo ou alguém tenha feito uso incorreto das ferramentas que são importantes para a conexão? Duvido. Mas o senhor que me responda: é possível? É isso que me intriga, de modo que me pon...

Autoestrada

Um amigo envia um PDF antigo, talvez de 2006 ou 2009, que faz lembrar não desses anos, mas de outros, talvez 2001 ou 2002, quando todas aquelas histórias ainda eram outras histórias e eu mesmo era outro, não este de agora, um outro que tento reconhecer mas sem conseguir, do mesmo modo como olho o agora e penso no mesmo da semana passada.  Apenas uma semana e tudo tão outra coisa que me pergunto se os anos passam mesmo na gente, se o tempo vaza, se a vida não é como no filme em que se tomarmos o corredor exato na hora exata damos com outros no futuro ou no passado, o próprio futuro e o próprio passado a mesma matéria maleável transportando memórias por meio desse rastro de sol coado que vem da copa e chega ao chão, como uma autroestrada. Você vê?, eu pergunto. É um fiapo, uma nesga, um mínimo de qualquer coisa, e nisso continuo tentando fazer entender que basta um pouco para que se faça o nada, que já é muito. Não há resposta, apenas o lance da cabeça e dos cabelos, as m...

Marcas

Uma cicatriz, uma mancha escura, um borrão no rosto, estrias nas coxas, outra cicatriz no braço e a linha dos olhos um pouco torta, todo o lado esquerdo pendendo para baixo, como a anunciar que certo conjunto harmonioso havia estado ali há muito tempo mas já tinha ido embora. Daí que a sola do sapato se gastasse mais do lado direito que do esquerdo, daí que as camisas apertassem mais no braço direito que no esquerdo, daí que os lábios repuxassem mais no direito que no esquerdo e os olhos diferissem no modo como fixam um objeto a sua frente. Tudo um desalinho, desarranjo, mas talvez fosse assim, assim talvez tivesse aprendido a enxergar o torto e o enviesado, o certo e o errado equivalendo-se porque em algum momento eles entrariam em conjunção. E a disjunção fosse a etapa momentânea, o torto por reto e vice-versa. Agora tinha aula e na aula desceria ao inferno acompanhando o personagem que nos círculos depara com Beatriz. Agora usaria a medida incerta de sua vista p...

Matéria escura

Então a gente estava no carro voltando e tocava uma música, um axé antigo, tipo Ivete no começo da carreira,  e é incrível como essas músicas são bonitas, eu pensei, como são parte já de qualquer coisa afetiva daquele tempo difícil de precisar mas no qual a gente se debatia com a vida sem saber que era vida ainda o que a gente tinha nas mãos, naquele tempo eu só achava que as coisas eram como eram porque o tempo era aquele e não outro, se fossem meus pais teriam dificuldades diferentes das minhas, mas depois fui entendendo que a vida muda pouco ou quase nada, a vida, como naquela música que fala de amor e outras coisas assim em ritmo alucinado, era uma matéria escura que vamos entendendo menos ainda à medida que o tempo passa. E já passou tanto. 

Levantar a vista

Saí pra fumar e levantei a vista, levantar a vista equivale a tropeçar, só que pra cima. Tinha uma varanda, duas, na verdade, luzes acesas e uma pessoa contra a luz olhando pra baixo. Pensei na probabilidade de que duas pessoas olhando na mesma direção mas em sentido contrário se encontrem uma no que a outra projeta de si. Era pouco provável, quase zero, então o flanelinha acenou para o carro parado que impedia outro carro de sair que impedia outro carro. Uma sucessão de impedimentos no meio da madrugada. E a pessoa ali na varanda olhando pra tudo com o mesmo desinteresse insone que eu, a diferença é que talvez não tivesse bebido e eu sim, a diferença é que talvez não estivesse fugindo e eu sim, a diferença é que talvez não precisasse levantar a vista e eu sim. 

Esquecimento

Guardei uma frase mas a perdi. Acontece com frequência, lembrar e perder, acreditar que a manterei na cabeça até chegar em casa, quando então sentarei e escreverei a partir dela, sobre ela.  Acontece que agora que cheguei tento procurar e não encontro e se me esforço parece ainda mais inútil porque não há um vestígio, uma nesga do que teria sido se ainda estivesse aqui. Um título? Uma frase inteira?  Um verbo apenas? Não sei. Apenas que tinha a intenção de, a partir dela, sobre ela, em torno dela, começar qualquer coisa que julguei interessante na hora mas que agora me parece apenas inútil. Porque a perdi e se a perdi estava fadada ao esquecimento.