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Armas da infância

Todas essas charges são bonitas e comoventes, mas há um quê de impotência nisso tudo que azeda lá no fim. Quero gostar e me enternecer. Quero até chorar junto. É um modo de catarse coletiva. Serve mais aos vivos que aos mortos. Esbarro na agonia de saber que não passa disto: um gostar e enternecer com prazo de validade curto. Uma indignação perecível. Dura até a semana que vem ou antes. Fico pensando agora não na criança que morreu, mas nas que ficaram e no quanto elas ainda vão continuar à mercê da mesma tragédia, apesar de toda a dor e sentimentos de solidariedade que a morte de Aylan Kurdi causou no mundo inteiro. Chorar a morte e se indignar. Indignar-se com a falta de indignação. Hoje, quando cheguei em casa, minha filha dormia na mesma posição do garoto sírio encontrado morto numa praia turca: de barriga pra baixo, as perninhas inclinadas, o rosto enterrado no colchão do berço. Respirava devagar, as mãos estiradas e o peito subindo e descendo como um fole....

E se?

Escrevi na última quinta-feira, 13, a propósito das manifestações marcadas para 16 de agosto: “Sobre domingo: talvez nem tão grande quanto a manifestação de março nem tão pequena quanto a de abril. Apenas o suficiente pra manter o governo alerta. Mas, e se bombar? Muda alguma coisa? Mais pressão no Congresso, sobretudo na Câmara, que teria de esperar parecer do TCU pra tentar a única cartada em mãos: impedimento”. Esqueci de acrescentar: mais pressão também sobre a oposição, que, segundo declarações dadas ainda sob efeito dos protestos por uma de suas figuras mais proeminentes, é hora de unificar discursos, deixar diferenças de lado e abraçar a tese do impeachment. Se antes a bandeira do afastamento dividia os tucanos, fracionados entre o apoio a Aécio, Alckmin e Serra, hoje o discurso tende a se tornar mais homogêneo. A senha para a pacificação foi a dura crítica de FHC feita ontem. Para o grão-tucano, o gesto mais nobre da presidente hoje seria renunciar ao mandato. ...

A língua dos protestos

Ainda tentando processar tudo que vi ontem na Praça Portugal. Não falo só da recepção festiva a um deputado como Bolsonaro, pródigo em afrontar direitos humanos, mas da coisa em geral. É atordoante como fenômeno e inapreensível como experiência imediata. Ao menos agora. É uma tentação analisar todo o corpo do protesto a partir do erro de português num cartaz ou pela postura isolada de um ou outro manifestante. Vou fugir disso. Do contrário, terei que interpretar o pegar em armas do presidente da CUT como uma incitação à violência e lembrete indireto do governo de que, se preciso for, vai haver confronto nas ruas. Fujo também da pescaria ideológica, das “15 fotos selecionadas que mostram o que foi o protesto”, como escreveu o Diário do Centro do Mundo. Não sei o que, além do “Fora, Dilma”, conecta as pessoas que foram às ruas ontem. Talvez nada. As frases, desencontradas, só se uniam a custo quando o alvo era comum: Lula, Dilma e o PT. O resto, uma mixórdia, com direito a ped...

Janela

Minha janela fica em frente ao aeroporto, mas dizer em frente não é muito preciso. Digamos que fica a alguns quilômetros do aeroporto e que daqui vejo os aviões decolando e pousando, escuto o som e me divirto imaginando os rostos na janela. Me divertir é exagero, me divirto mesmo é pensando que poderia estar viajando agora, neste momento. Se eu fosse outra pessoa e não a pessoa que sou vivendo a vida que vivo. Não tenho problema com a vida que vivo, apenas gosto de pensar que, lá nas alturas, a quilômetros de distância, tem alguém com o rosto colado no vidro olhando pra baixo, talvez pra mim, e a gente não se reconheça. Um dia, li que um boeing holandês tinha feito um pouso de emergência em Fortaleza. Parecia sério. Fiquei alarmado. Tudo que diz respeito a aviões e voos é alarmante. Leio turbulência e minhas mãos suam. Escrevo avião e tenho dor no estômago. Ironicamente, consumo muita informação sobre voos e aviões. É um modo de lidar com o perigo: estando perto. Quando e...

Adeus à linguagem

Olha, eu disse pra ela, tem uma cena que não entendi bem. Eu não entendi nada. Eu também não. Estávamos falando do novo Godard. Falar novo Godard já é meio pernóstico, eu acho, pressupõe um Godard mais velho, ou os filmes mais antigos, aos quais eu teria assistido e compreendido e se ela quisesse agora eu até falaria a noite inteira sobre uma cena específica de um desses filmes. Acontece que não vi o Godard antigo, apenas o novo, e o novo eu não entendi nada, mas digo que não entendi uma cena, as demais, pode perguntar. Então e aquele cachorro? Silêncio.   Eu minto, minto pouco, mas minto. Eu minto muito, mas apenas pequenas mentiras relacionadas ao social, tipo se conheço Tolstoi ou Cervantes. Falar o novo Godard, por exemplo, e o antigo também, isso ajuda com as meninas? Depende, se entendeu e quer falar, não ajuda, se não entendeu nada e mesmo assim quer falar, ajuda. Eu não entendi nada. Eu também não. Trocaram sorri...

Nome impróprio

Cada nome revela um segredo. É possível adivinhar. Basta esquecer. O nome casa, ou sorvete, ou prato e sujeira e axila e cheiro. Boceta, pau, peito, bunda, perna, língua. Nome é tudo igual.  A sílaba parada, suspensa e só, depois outra e outra. O nome, essa arbitrariedade que o significado conserta. A alma que existe ali, nós inventamos. Na criança que fui, tinha essa mania de olhar o telhado sem coberta de cimento, apenas telha e madeira na trama que protegia da chuva e sol. De manhã cedo, tipo seis horas, o sol entrava de lado, meio filtrado, entre o telhado e a parede, a imagem se invertia e quem passava na rua ficava de cabeça pra baixo na parede. Eu, na rede, assistia ao filme mudo das sombras de ponta-cabeça ainda meio sonolento, mas admirado que fosse assim. Eu gostava que fosse assim. O teto virava uma câmara escura, projetando o movimento. Quem ia, voltava, quem voltava, ia. Até que o pai mandou cobrir o teto de casa e cada coisa recuperou o seu...

E se?

E se as manifestações de domingo bombarem? E se nova fase da Lava Jato explodir o governo? Difícil prever, tanto adesão no domingo, se massiva ou nanica, quanto o futuro da investigação. Sobre domingo: talvez nem tão grande quanto a manifestação de março nem tão pequena quanto a de abril. Apenas o suficiente pra manter o governo alerta. Mas, e se bombar? Muda alguma coisa? Mais pressão no Congresso, sobretudo na Câmara, que teria de esperar parecer do TCU pra tentar a única cartada em mãos: impedimento. Mas aí veio o STF e decidiu que a responsabilidade por essa cartada será dividida entre Câmara e Senado e que não caberá a Cunha liderar o processo, mas a Renan. Como disse um: ter amigos fortes no STF é tudo. Um palpite: o timing do impeachment passou. Agora, só com fartura de provas de envolvimento direto da presidente com algum trambique. Sem isso, baseado apenas em domínio do fato, nada feito. Os negócios estão prejudicados e há muita volatilidade. O ...