Pular para o conteúdo principal

A língua dos protestos



Ainda tentando processar tudo que vi ontem na Praça Portugal. Não falo só da recepção festiva a um deputado como Bolsonaro, pródigo em afrontar direitos humanos, mas da coisa em geral. É atordoante como fenômeno e inapreensível como experiência imediata. Ao menos agora.

É uma tentação analisar todo o corpo do protesto a partir do erro de português num cartaz ou pela postura isolada de um ou outro manifestante. Vou fugir disso. Do contrário, terei que interpretar o pegar em armas do presidente da CUT como uma incitação à violência e lembrete indireto do governo de que, se preciso for, vai haver confronto nas ruas.

Fujo também da pescaria ideológica, das “15 fotos selecionadas que mostram o que foi o protesto”, como escreveu o Diário do Centro do Mundo.

Não sei o que, além do “Fora, Dilma”, conecta as pessoas que foram às ruas ontem. Talvez nada. As frases, desencontradas, só se uniam a custo quando o alvo era comum: Lula, Dilma e o PT. O resto, uma mixórdia, com direito a pedido por intervenção militar, mais liberalismo, menos Marx, prisão e até enforcamento dos corruptos. Com um destaque nada eventual para o juiz Sergio Moro, o rosto que predominou em todos os cantos. Moro é o novo Joaquim Barbosa, espécie de Sebastião que volta pra tirar a gente do atraso e do banditismo.

Vendo as manifestações de agora, há quem diga que os protestos de 2013 ganharam corpo e organicidade, resultando nas ondas de março, abril e agosto. Equivocado. Duvido que haja mais do que uma ligação circunstancial, que é esse mal-estar difuso, relacionando uma coisa e outra. As pessoas se sentem incomodadas, mas não conseguem formular uma resposta em termos políticos.

Daí o apelo que a luta contra a corrupção e o rosto de Moro têm. Como símbolos, funcionam num nível elementar, quase primitivo: o das emoções epidérmicas, fáceis de ser acessadas e transmitidas.

Ontem, enquanto dava uns goles na latinha de cerveja, um senhor de cabelos brancos gritava: nossa bandeira nunca será vermelha. Parecia acreditar no que dizia. Em algum lugar do país, mesmo com Levy na Fazenda e o acordão se desenhando entre Renan, empresas e governo, esse senhor enxerga a ameaça de uma ditadura comunista.

É disso que estou falando: a política jogada ao mesmo nível de uma partida de futebol. E, nas arquibancadas, ninguém espera serenidade ou uma reflexão nuançada dos torcedores, mas xingamentos e garrafas atiradas de parte a parte.

Dizem que o momento é importante porque fortalece a nossa jovem democracia. Sem aprendizado político, sem esforço interpretativo, sem uma crítica que vá além do trivial "Fora, Dilma" e a sua contraparte, o "Fora, Aécio", dificilmente o Brasil conseguirá melhorar como país.

Em tempo: os protestos afirmativos, os que pedem “Fica, Dilma” ou elencam razões para não ir às manifestações do dia 16/8, não conseguiram ser nem melhores nem piores. Ao abraçarem a lógica rasteira e a indigência do debate, nivelam-se no que há de pior. Podem acertar no português, mas erram na política.

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...