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Iracema de Hans Donner

Voltou a circular na internet uma foto em que a “Iracema da Ecofor” é comparada à verdadeira, a “Iracema Guardiã”, obra do artista plástico Zenon Barreto. São duas índias bem diferentes. Uma é a silvícola de Alencar; outra, uma dançarina do Faustão. Uma enverga o arco, artefato indígena utilizado para caça e defesa; outra, um espaguete flutuador de hidroginástica, muito comum nas piscinas do Sesc. Ano passado, por obra da molecagem, as mãos da Iracema foram decepadas. Era a gota d´água no contínuo processo de desmazelo com o patrimônio. A prefeitura, então, recolheu a estátua para reforma. A índia passou um tempo na praia da Cofeco, na oficina do artesão que cuidaria em restituir-lhe as formas originais (!). Só depois chegou à praia. Era julho de 2012. Ficou dois meses fora do pedestal, curtindo férias forçadas. Foi tempo suficiente para repensar toda uma existência.   Com o regresso, porém, veio o susto. A estátua não era a mesma. Lembrava uma matuta que tivesse ...

Azul

Mais que coragem, fome. Os dois estados não se confundem. Coragem sem fome é passo em falso. Fome sem coragem, platonismo juvenil. Mais que fome, coragem.  A moldura do rosto dispensa paisagem, a paisagem dispensa as falas, as falas dispensam um conjunto de explicações, explicações dispensam o resto. Quando duas pessoas dispensam tutoriais afetivos: isso também é amor. Não há encaixe perfeito, tampouco imperfeito.  Enxergar os outros como peças de Lego é um boa solução apenas quando o objetivo for construir castelinhos com derivados do petróleo. Sexo é menos fricção, mais ocupação. Quando criança imaginava o contrário. Roçar no outro, braço com braço, perna com perna, eis o sexo na cabeça de um menino. Daí que fosse tão bom andar de ônibus. Qualquer ser humano tem em média 2 m² de pele. É o suficiente pra cobrir uma mesinha com dois lugares espremidos. O que cada um faz com a pele morta é o que interessa.   Tudo que escapa pela boca e que não...

Falso

Um falso perfil no Twitter anuncia uma falsa morte de um escritor hábil e indigesto. Longe dali, no mundo real, um falso intérprete para surdos gesticula freneticamente. Entretanto, as palavras que vai desenhando no ar não querem dizer nada para olhos terrificados. Um comunicado informou que o falso intérprete não foi localizado para prestar "os devidos esclarecimentos".  Num estádio de futebol com capacidade para 95 mil pessoas, um presidente se fotografa sorrindo num selfie que captura um grama de genuína felicidade. Está ao lado da esposa, que não consegue disfarçar o falso ciúme que sente toda vez que uma autêntica blondie flerta de mentirinha com o homem mais poderoso e também o mais falsamente honesto do planeta. A imprensa, vacilante entre a falsa excitação e a verdade por trás da cena, decide escolher no cara ou coroa. A possibilidade de que esteja 50% certa a conforta mais que tudo.   Em resumo, o sorteio é falso, as bolas foram manipuladas. O leite é fals...

Karaokê

Jamais havia parado cinco minutos pra observar atentamente o ecossistema de um karaokê. O movimento das pessoas, o empenho que dedicam a cada interpretação, a seriedade estampada nos rostos, os pedidos de socorro às mesas vizinhas nas partes que requerem um gogó aprumado, a predileção por um cânone com mais apelo popular, a satisfação em se diferenciar cantando à capela alguma música obscura de um intérprete romeno naturalizado italiano, a sequência de hits que um mesmo cantor vai emplacando por rodada, o profissionalismo do garçom que segue anotando pedidos e enfileirando números num caderninho pautado ainda quando tudo a sua volta parece desmoronar, o clima de ritual que paira sobre todos. Num karaokê, ninguém se envergonha de mostrar sua verdadeira natureza (ou, quando se envergonha, já é tarde demais): o repertório de novela, o brega francês, todas as maravilhas da Década Romântica Explosiva, os sucessos de Patrícia Marx, Chitãozinho & Xororó, Raimundos e Furacão 2000...

O resgate

Escolho a pior opção. Decido comentar uma notícia. O filme do Lars von Trier passou numa sala para crianças. Foi só um trechinho, mas imagina a vovó cobrindo os olhos da menina curiosa. Vó, que barulho é esse? Vó, que lugar é aquele? Vó, aquilo não cabe, cabe? A vó nem ruboriza mais.  Tyler Durden existe e mora na Flórida. O Youtube excluiu o trailer do filme. Seres mágicos, as crianças puderam assisti-lo em primeira mão. Como um bandido que salta da moita, dezembro nos ataca. Com o passar do tempo, um grande contingente de pessoas vai progressivamente perdendo a capacidade de ruborizar. Dizem que quem ruboriza fácil é mais verdadeiro. Sei de uma porção de exímios mentirosos que seriam capazes de simular vermelhidão nas faces. O Luan Santana gravou "Então é Natal", e agora a Simone parece a melhor cantora do mundo.  Assisto uma nova série de zumbis e fico encantado com a beleza de uma adolescente francesa que volta do mundo dos mortos sem perder o viço....

Erramos possível

No texto anterior, onde se escreve “gosto”, leiam "repertório" ou qualquer outra palavra menos vulgar, de modo a não parecer que o autor foi exageradamente pedestre na abordagem de uma questão bem mais cabeluda do que de fato se mostrou num primeiro momento. Onde se afirma que o consumo, a depender da ocasião, dispensa essa etapa epifânico-problematizadora, encerrando-se no ato,  sintam-se à vontade para compreender o que quiserem, desde que considerem duas realidades. A primeira: entre o cidadão e a obra, há muitos níveis de fruição. A segunda: pleitear a ampliação do leque de formas de fruição e de obras é diferente de desqualificar escolhas por não contemplarem um referencial particular.  Onde se discutem afinidades eletivas e, por tabela, sugere-se que os repertórios individuais nunca são estanques, recomendo cuidado ao concluir o exato oposto, que o sensível é cristalizado e a esfera do gosto, impermeável às discussões.  Onde se levanta a hipótese de qu...

Gosto, não gosto

Discutir gostos agora é uma atividade sazonal. Às barbas de dezembro, os fóruns locais se agitam. A respeito do assunto, tava aqui pensando alto sobre como muitas vezes somos inexplicavelmente cruéis com quem julgamos ter um gosto apurado ou sofisticado (duas palavras traiçoeiras), classificando-o de elitista. E também sobre como nos esquecemos de que o ecletismo é quase sempre um elitismo com sinal invertido, ainda mais impositivo e excludente. E, finalmente, sobre como é antipático desgostar do que é de gosto comum. Um discurso possível : prefiro X a uma série de outras coisas. X, para mim, representa o melhor, o mais bem acabado, o que não se esvai no processo de consumo. Mesmo quem nunca ouviu falar de X, caso tenha a oportunidade de conhecê-lo, vai fruir algo de qualidade. Dizem que X é para poucos, entre os quais fui maldosamente incluído. Miopia. X é para todos, é para muitos. Num país governado por mim, as pessoas teriam amplo acesso a X. Nos réveillons promovidos so...