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Sem ironias

Na imagem acima, a autora do artigo Como viver sem ironia,  Christy Wampole,  em pose que expressa, ironicamente ao mesmo tempo, ambiguidade, sensualidade e inteligência em graus extremos. O texto, publicado originalmente no blog do  The New York Times em 27 de dezembro de 2012,  pode ser lido na íntegra aqui .  O que as futuras gerações farão com esse sarcasmo feroz e com o cultivo descarado da besteira?   A frase me pegou de calças curtas. De minha parte, como representante legítimo do cultivo descarado da besteira, não sei o que dizer. É possível viver sem ironia? A pergunta só pode ser irônica. É possível viver sem indiferença? Plenamente, mas não sem ironia nem besteira, dois ingredientes fundamentais na cultura de qualquer época. Somos mais ou menos irônicos que nossos antepassados? Não sei dizer. “Nova Sinceridade”? Acho pomposo e, se querem saber, pouco atraente, mas bastante necessário nas atuais circunstâncias. Gostaria de...

Mais sobre o 'Barba ensopada'

Não resta dúvida de que o burburinho midiático que se seguiu – e até antecedeu – ao lançamento do romance Barba ensopada de sangue acabou criando uma necessidade urgente de referendá-lo desde já como potencial candidato a história do ano – quiçá de uma geração. Era uma tentação que se justificava também pela alta expectativa que nasce a cada novo trabalho do paulistano Daniel Galera, autor de Cachalote e Mãos de cavalo . Assentada a poeira da novidade, porém, às vozes que saudaram o quarto romance do escritor com pouco mais que entusiasmo e histeria, misturaram-se outras, talvez mais preocupadas em entender como todo o virtuosismo estilístico do autor não foi suficiente para impedir que Barba ensopada não se confirmasse como a grande aposta literária. O livro narra a história de um professor de educação física gaúcho que sai à procura do avô, morto em Garopaba, no litoral de Santa Catarina. Sem nome mencionado ao longo dos acontecimentos, o protagonista, incapaz de r...

Vem aí o LED

O LED vem aí. E sua chegada traz embutida uma rede de significados neurais perceptíveis apenas a pipoqueiros, amantes e demais integrantes de uma sociedade secreta que venera clandestinamente a luz amarela emitida por lâmpadas tradicionais. Escanteadas pela força do progresso, as vetustas e incandescentes amarelinhas terão como destino final o limbo amargo dos artefatos sem uso.  Isso porque as vantagens do LED são muitas e incontáveis. Dentre as principais, ajudar a colocar um freio na violência urbana e higienizar as relações afetivas que optam por se expressar licenciosamente no espaço público.  A principal característica do LED é direcionar um facho concentrado de luminosidade branca, fria e intensa, que os sites especializados no assunto denominam  carinhosamente de “luxo luminoso”. Outro ponto positivo: o LED economiza energia, não gera calor e tem compromisso com o meio ambiente.  Arquitetos e designers de interiores recomendam com veemênci...

Crônica que faltava

Aonde tudo isso iria parar, cada etapa percorrida, era algo que não previam, um futuro que não se adivinhava fácil um dia antes que fossem começo, antes mesmo das trocas, antes que a paixão assentasse e o suor grudasse novamente no corpo e fosse rotina o que parecia puro frenesi. E fosse depois saudade o que antes era espera. Não se adivinhavam aperto, carícias prolongadas, um continuado beijo em que chapinhavam como dançarinos sem hora nem prumo nem vontades contrastantes, eram plenamente acordo e decididos seguiam vinculados por esse breve istmo todo carne que se chama  vulgarmente língua. Onde tudo isso foi parar é algo que agora não se perguntam, não querem do instante a cruel revelação, se é revelação o que se sabe da véspera, surpresa o que se mostra em acenos e precede até mesmo o flerte iniciático, aquele momento em que dois pontos equidistantes no mundo até ali vasto se aproximam e de algum modo ainda pouco propenso a explicações de ordem científica se d...

Glória e derrocada de uma geração

Um argumento seria: jovens assumem provisoriamente o controle da fábrica da cidade. De pronto instalam-se no gabinete, no pátio, na casa de máquina, na administração, no vão de ferramentas, na sala de jogos e no lobby. Desejam não apenas transformar a fábrica, mas a vida das pessoas. Para tanto, elegem novos capatazes, sócios, gerentes, fiscais, operários e chefes de setores, além de estoquistas e controladores da qualidade dos novos artefatos que sairão das linhas de montagem, preservadas muito mais como ato de concessão a um passado que tinha lá as suas seduções do que como ferramenta produtiva. De posse das instalações da fábrica, antes um monstrengo cinza que poluía as ideias da cidade, infestando ruas e avenidas e recobrindo tudo com uma camada grossa e oleosa de má-vontade, agora os jovens se sentem no dever de proporcionar uma experiência diversa, sensível, um contato mais verdadeiro com o real, uma ponte concreta entre o passado de provincianismo e o boom ...

Desencontro de notáveis

R esumo da ata da reunião do Círculo do Pensamento (transferida de última hora do CSU de Messejana para o Cuca do São Cristóvão). Chegaram atrasados: 2, 85, 74 e 32478. Compareceram em horário e local previamente informados: 21, 65, 9852, 742, 9365, 587 e 7552. Faltaram: 325, 6998 e 745. O membro 745 chegaria sem explicações antes do fim do encontro e entraria na sala aparentemente transtornado. Após anotar em frenesi cada atitude e reação dos presentes, pôs-se de pé e foi embora, sem grandes nem pequenas explicações. O grupo ainda aguarda resposta que elucide a atitude intempestiva. Quanto aos demais, cada um deverá se responsabilizar pela conduta que assume. 5524 não deu certeza de sua participação, tampouco de como deseja ser tratado pelo grupo. Bisbilhoteiro, diletante, contra-regra, ajudante ou apenas um curioso que de tempos em tempos resolve colocar a cabeça para fora do buraco? De modo que, não sendo esperado, não entra oficialmente no Livro das Frequên...

Não exatamente uma aventura

Publicado no jornal O Povo em 3/1/2013.  Então, como previsto, não foi exatamente uma aventura. A primeira parada no restaurante: fechado.  A segunda no café: fechado. A terceira no trailer de cachorro-quente: aberto. O que havia começado como esboço de um jantar com pretensões indisfarçavelmente românticas terminou se mostrando mais interessante ainda, principalmente ao se considerar que o carrinho de hot dog já é uma instituição local e dele ninguém tira essa áurea construída com muito suor, salsicha e milho verde.   Uma vez lá, portanto, descobre-se, sempre da maneira menos ortodoxa, por que o cearense é antes de tudo um forte, ou seja, um ser humano talhado para funcionar e funcionar bem sob quaisquer condições atmosféricas e de temperatura, não sendo preciso agora entrar no mérito da questão da higiene do carrinho nem de como o molho de tomate, a carne e vagamente a batata palha pareciam viscosos e amolecidos para um alimento pré-cozido preparado especialme...