Publicado no jornal O Povo em 3/1/2013.
Então, como previsto, não foi exatamente
uma aventura. A primeira parada no restaurante: fechado. A segunda no café: fechado. A terceira no trailer
de cachorro-quente: aberto. O que havia começado como esboço de um jantar com
pretensões indisfarçavelmente românticas terminou se mostrando mais
interessante ainda, principalmente ao se considerar que o carrinho de hot
dog já é uma instituição local e dele ninguém tira essa áurea
construída com muito suor, salsicha e milho verde.
Uma vez lá, portanto, descobre-se, sempre
da maneira menos ortodoxa, por que o cearense é antes de tudo um forte, ou
seja, um ser humano talhado para funcionar e funcionar bem sob quaisquer
condições atmosféricas e de temperatura, não sendo preciso agora entrar no
mérito da questão da higiene do carrinho nem de como o molho de tomate, a carne
e vagamente a batata palha pareciam viscosos e amolecidos para um alimento
pré-cozido preparado especialmente horas antes e servido a um grupamento de
pessoas que aguardavam cheias de esperança as alvíssaras de 2013.
Faltavam três horas para o réveillon, evento
de natureza sazonal que consiste na queima programada de fogos de artifício.
Por que fogos e não confetes ou flocos de salgadinho à base de milho? Embora
não saiba responder com todas as garantias, arrisco a dizer que os fogos, ao espocarem
no imenso céu aluado de qualquer cidade do mundo, são mais eficientes em demarcar
simbolicamente a passagem de um período de 365 dias (alguns com um a mais) para
outro. E que, realizada de outra maneira, essa transição temporal talvez
ficasse malfeita, precária, não dando a ideia de que algo definitivamente
acabou e uma coisa nova tem início a partir de agora. É para isso que servem
tanto a contagem regressiva quanto as ondas e o branco das vestes. Tabula
zerada, é hora de escrever no caderno novo.
Insistindo no problema dos fogos. No caso
de outro produto que, arremessado para cima, obedeça à lei magna de retornar ao
chão, sem emissão frenética de luzes, e não o show pirotécnico tradicionalmente
utilizado, quem sabe os efeitos psicológicos embutidos na proposta de réveillon
fracassassem e a festa acabasse suspensa anos depois. Suspensa não porque um
prefeito ou outro resolvesse simplesmente dar com o dedo, mas porque as pessoas
não perceberiam a sutil diferença entre algo que começa e algo que termina.
Essa distopia, contudo, é impossível de acontecer.
Os fogos são insubstituíveis e a cada ano a queima apenas melhora no quesito
teatralidade, sendo motivo de orgulho, quando não de profundo e raro enlevo.
E o que não faltou foi gente orgulhosa e
enlevada no último dia do ano. Nas ruas da cidade, turistas e nativos formavam
uma massa compacta que, não fosse pelas circunstâncias, poderia ser facilmente
confundida com um grande cortejo religioso cuja indumentária reivindicasse
preferencialmente o branco dos pés à cabeça, como parecia ser o caso e, de
fato, era. Uma marcha bonita e emocionante de pessoas rumando para o mesmo
ponto é algo que, como os fogos, enleva e, às vezes, emociona. O dar-se conta
de fazer parte, o sentir-se integral e anonimamente acolhido: isso não tem
preço.
Descemos do táxi em frente ao Dragão do Mar.
Atravessamos a plataforma com fotografia tridimensional que confunde e alegra
centenas de milhares de turistas o ano inteiro enquanto os de casa, eu, você e
todos os demais nascidos e moradores de Fortaleza, se sentem particularmente
satisfeitos por nunca haver feito uma pose tipo “agachadinha sorridente” ou “polegar
no modo positivo”, que admite também a variação “duplo polegar em modo positivo”.
Por ali tudo era a maior calmaria e mesmo a fotografia parecia estranhamente
desolada.
Entre 21h e meia-noite, o que fizemos, como
previsto, não foi exatamente uma aventura: a) comer mais cachorro-quente, b) tomar
uma Coca trincando de gelada, c) esbarrar nos patinadores, d) ser engolfado
pelas turmas arrastando crianças suadas que escapavam dos ônibus em direção à
praia já cantando com entusiasmo os sucessos de Luan Santana, e) tentar usar o
banheiro químico (sem sucesso), f) decidir entre ficar mais perto do palco ou
da ponte, com larga vantagem de votos favoráveis à última, g) escolher uma
pedra cuja superfície fosse plana, sem tanta rugosidade e alinhada ao solo o
bastante para que pudéssemos sentar, h) comprar pipoca (excelente ideia), i) lamentar
a falta de uma máquina fotográfica mas não saber explicar por que é importante
ter sempre uma máquina fotográfica a tiracolo, j) imediatamente esquecer da
máquina e até festejar que não tivéssemos uma, l) relembrar, mês a mês, os principais
acontecimentos do ano (campo pessoal), m) perceber a recorrência de certos
padrões em 2012, n) eleger como o principal deles a compreensão mútua de que
organizar as coisas (campo pessoal) é sempre o melhor caminho, o) cantarolar
uns trechinhos de uma música do Beto Barbosa que tocava perto, entre p) e y)
pusemos novamente as engrenagens da memória para funcionar, com especial
atenção aos fatos que nos aproximaram em detrimento daqueles que nos afastaram,
sem, contudo, parecer excessivamente melosos ou deslumbrados ou artificialmente
românticos, como um casal sentado três pedras à frente que se afagava
conscienciosamente e outro que ficou de costas um para o outro, num movimento
que logo interpretamos como sinal grave
de dissolução iminente.
Nossa última providência no derradeiro minuto
do último dia do ano foi, como não poderia deixar de ser, z) assistir à queima
de fogos, confundida duas vezes com o lançamento precipitado de bombas
próximas, mas que, ao começar, deixou todo mundo de boca aberta e coração aos
pulos, eu também e ela principalmente, de maneira que, dali até o último papoco,
que estourou no céu como se fosse uma granada carnavalesca, nos portamos feito
crianças, que é o comportamento padrão que resolvemos consensualmente adotar em
2013.
Feliz ano novo.