Não resta
dúvida de que o burburinho midiático que se seguiu – e até antecedeu – ao lançamento
do romance Barba ensopada de sangue acabou criando uma necessidade urgente
de referendá-lo desde já como potencial candidato a história do ano – quiçá de
uma geração. Era uma tentação que se justificava também pela alta expectativa
que nasce a cada novo trabalho do paulistano Daniel Galera, autor de Cachalote
e Mãos
de cavalo.
Assentada
a poeira da novidade, porém, às vozes que saudaram o quarto romance do escritor
com pouco mais que entusiasmo e histeria, misturaram-se outras, talvez mais
preocupadas em entender como todo o virtuosismo estilístico do autor não foi
suficiente para impedir que Barba ensopada não se confirmasse como
a grande aposta literária.
O livro narra
a história de um professor de educação física gaúcho que sai à procura do avô, morto
em Garopaba, no litoral de Santa Catarina. Sem nome mencionado ao longo dos
acontecimentos, o protagonista, incapaz de reter o rosto das pessoas por mais
de alguns minutos por causa de um problema neurológico, dedica-se a investigar,
então, as razões por trás do assassinato de Gaudério, o avô paterno. O fato que
desencadeia essa busca é igualmente traumático: o suicídio do pai, que, de
espólio, lhe deixa uma cachorra.
Da
relação com Beta, a cachorra, nascerá o estopim dramático do romance. Em linha
reta, trata-se, portanto, da trajetória de um personagem, inserido em ambiente claramente
hostil, a vila de pescadores de Garopaba, à procura de informações que possam
ajudar a construir um mosaico de significados para si. A hostilidade é herança
da espantosa semelhança que tem com o avô, figura pouco querida na localidade. Redescobrir
o mapa fisionômico do velho é também recriar a própria história. Reside aqui parte
do apelo da obra: o jogo de espelhos que se cria entre as três personagens
masculinas: avô, pai e filho, cujas vidas se entrecruzam subterraneamente.
A favor
de Barba
ensopada, há ainda a altíssima voltagem dramática de muitas passagens, diálogos
afiados, o carisma dos personagens e a linguagem fluida, com pleno domínio
técnico de Galera. A desfavor, a superabundância de descrições digressivas, responsáveis
por fazê-lo desnecessariamente comprido – ou, como disse um crítico, “uma
caricatura de romance de fôlego”. De fato, suprimidas as cenas com pouco ou
nenhuma relevância, restariam pouco mais de duas centenas de páginas.
A impressão,
que jamais arrefece, é de que passeios de barco, mergulhos no mar e conversas
fortuitas com nativos poderiam ser resumidos, apenas sugeridos ou rearranjados,
de modo a não criarem essa gordura, que termina por emperrar a leitura. É um
sentimento frustrante desejar saltar trechos inteiros cirurgicamente descritivos
de fauna e flora para chegar ao que interessa de fato.
É o caso
do encontro com o cantor nativista Índio Mascarenhas e o protagonista, que só
ocorre depois de percorrida toda a diversidade de atrações que se apresentarão
na feira de Garopaba e conhecida a infinidade de sortimentos das banquinhas de
doces e salgados à exposição. E também a primeira vez em que o herói sem nome
resolve pescar com o arpão que ganhou de um amigo, cena que, depois se
descobrirá, não tem nenhuma função narrativa evidente. Como essas, há outras
tantas passagens em Barba ensopada.