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Glória e derrocada de uma geração

Um argumento seria: jovens assumem provisoriamente o controle da fábrica da cidade. De pronto instalam-se no gabinete, no pátio, na casa de máquina, na administração, no vão de ferramentas, na sala de jogos e no lobby. Desejam não apenas transformar a fábrica, mas a vida das pessoas. Para tanto, elegem novos capatazes, sócios, gerentes, fiscais, operários e chefes de setores, além de estoquistas e controladores da qualidade dos novos artefatos que sairão das linhas de montagem, preservadas muito mais como ato de concessão a um passado que tinha lá as suas seduções do que como ferramenta produtiva. De posse das instalações da fábrica, antes um monstrengo cinza que poluía as ideias da cidade, infestando ruas e avenidas e recobrindo tudo com uma camada grossa e oleosa de má-vontade, agora os jovens se sentem no dever de proporcionar uma experiência diversa, sensível, um contato mais verdadeiro com o real, uma ponte concreta entre o passado de provincianismo e o boom ...

Desencontro de notáveis

R esumo da ata da reunião do Círculo do Pensamento (transferida de última hora do CSU de Messejana para o Cuca do São Cristóvão). Chegaram atrasados: 2, 85, 74 e 32478. Compareceram em horário e local previamente informados: 21, 65, 9852, 742, 9365, 587 e 7552. Faltaram: 325, 6998 e 745. O membro 745 chegaria sem explicações antes do fim do encontro e entraria na sala aparentemente transtornado. Após anotar em frenesi cada atitude e reação dos presentes, pôs-se de pé e foi embora, sem grandes nem pequenas explicações. O grupo ainda aguarda resposta que elucide a atitude intempestiva. Quanto aos demais, cada um deverá se responsabilizar pela conduta que assume. 5524 não deu certeza de sua participação, tampouco de como deseja ser tratado pelo grupo. Bisbilhoteiro, diletante, contra-regra, ajudante ou apenas um curioso que de tempos em tempos resolve colocar a cabeça para fora do buraco? De modo que, não sendo esperado, não entra oficialmente no Livro das Frequên...

Não exatamente uma aventura

Publicado no jornal O Povo em 3/1/2013.  Então, como previsto, não foi exatamente uma aventura. A primeira parada no restaurante: fechado.  A segunda no café: fechado. A terceira no trailer de cachorro-quente: aberto. O que havia começado como esboço de um jantar com pretensões indisfarçavelmente românticas terminou se mostrando mais interessante ainda, principalmente ao se considerar que o carrinho de hot dog já é uma instituição local e dele ninguém tira essa áurea construída com muito suor, salsicha e milho verde.   Uma vez lá, portanto, descobre-se, sempre da maneira menos ortodoxa, por que o cearense é antes de tudo um forte, ou seja, um ser humano talhado para funcionar e funcionar bem sob quaisquer condições atmosféricas e de temperatura, não sendo preciso agora entrar no mérito da questão da higiene do carrinho nem de como o molho de tomate, a carne e vagamente a batata palha pareciam viscosos e amolecidos para um alimento pré-cozido preparado especialme...

Bastidores epistemológicos e o poder esotérico da faxina

É interessante, no mínimo, a genealogia de uma faxina doméstica, que por vezes se estende também a outras áreas da experiência, tornando-se nessas ocasiões uma faxina também das ideias, retirando pó dos móveis mais antigos do inconsciente, alvejando ou simplesmente polindo alguns poucos vãos antes empesteados e sem tanto uso. Falo besteira e tergiverso ao mesmo tempo. De fato a faxina, como começa e termina e tudo que acontece entre os dois polos, é um objeto de estudo esplendoroso, para usar um termo de que gosto muito (adoro a pobreza material do sufixo “oso”, que, em última instância, dá a ideia de abundância).   Embora negligenciada, a faxina presta-se a análises substanciosas sobre como organizamos nossas vidas, a saber, o conjunto mais ou menos homogêneo de interações solitárias ou não que ativamos a cada novo ciclo de 24 horas e que envolve muitas entradas e saídas, personagens, sentimentos, falas e arranjos afetivos. A faxina, o faxinar, os objetos que ...

Círculo do Pensamento (CSU de Messejana)

Nova reunião do Círculo do Pensamento (CSU de Messejana) marcada para amanhã, em local e hora a serem devidamente combinados com os diligentes signatários. Estão na pauta:  1. O que fazer agora que nada foi feito e as coisas parecem se distanciar cada vez mais da ideia que tínhamos do que seriam caso tudo saísse conforme o acertado, sem considerar, entretanto, a possibilidade de que, movida uma única peça lateralmente, não importasse qual lado fosse, os planos desenhados com rigor em cartolina e caneta pincel estariam em perigo e, sendo honesto, talvez até mesmo irreversivelmente fracassados, irrecuperáveis, destinados a descansar no cemitério das ideias que tinham tudo para dar certo mas não deram?  2. A saída é colocar-se adiante dos fatos, antecipando cada lance do destino, mas sem adotar postura afoita - assim recomenda o grão-duque do Círculo do Pensamento, o nada popular 8794, jovem de 19 anos cuja vida social é a mais recatada possível. Reiterando: o conselho d...

Um pouco antes da hora

Trecho da crônica que sai amanhã no jornal O Povo .  "Entre 21h e meia-noite, o que fizemos, como previsto, não foi exatamente uma aventura: a) comer mais cachorro-quente, b) tomar uma Coca trincando de gelada, c) esbarrar nos patinadores, d) ser engolfado pelas turmas arrastando crianças suadas que escapavam dos ônibus em direção à praia já cantando com entusiasmo os sucessos de Luan Santana, e) tentar usar o banheiro químico (sem sucesso), f) decidir entre ficar mais perto do palco ou da ponte, com larga vantagem de votos favoráveis à última, g) escolher uma pedra cuja superfície fosse plana, sem tanta rugosidade e alinhada ao solo o bastante para que pudéssemos sentar, h) comprar pipoca (excelente ideia), i) lamentar a falta de uma máquina fotográfica mas não saber explicar por que é importante ter sempre uma máquina fotográfica a tiracolo, j) imediatamente esquecer da máquina e até festejar que não tivéssemos uma, l) relembrar, mês a mês, os principais acontecimentos do a...

Gordura na barba

A menos de duzentas páginas do fim, 167 pra ser preciso, olho pro Barba ensopada de sangue em cima da mesa e penso dois segundos ou três se estiver com tempo livre. E logo vem o desejo de continuar a leitura, o que acaba se mostrando o grande diferencial do romance (me permitam livre acesso à expressão “grande diferencial”, que utilizarei novamente a seguir), entendendo como grande diferencial a capacidade de envolver de tal modo os leitores nos acontecimentos narrados que, uma vez fechado o volume, as possibilidades da história ecoam de muitas maneiras na cabeça, o que, dada a baixa potência dramática de muita coisa que li em 2012, acabo por considerar sim uma qualidade, talvez não a principal para a crítica especializada, mas uma qualidade sem a qual muita coisa boa por aí acaba se tornando... chata. Digo tudo isso sabendo que posso estar enganado. Ainda resta pouco menos de duzentas páginas e em pouco menos de duzentas páginas qualquer livro extraordinariamente promiss...