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Por que sou feliz

Quer dizer: eu sou uma pessoa feliz. Não porque a vida tenha sido particularmente benevolente comigo. Sou feliz assim, de graça, acordo e, antes ainda do café da manhã, quando papai e mamãe se preparam para ir trabalhar e minha irmã junta os livros e calça os sapatos e veste a farda preguiçosamente, coloco uma música no rádio do quarto e cantarolo baixinho. Pode ser qualquer música, desde que trate de temas ou expressamente felizes ou alusivos à felicidade, mas não de maneira remota nem exageradamente cifrada. Prefiro que sejam apenas superficialmente indiretas as relações entre significante e significado. Quer dizer que, em seguida, me enfio debaixo do chuveiro. “Felicidade”, diz a música, “é só questão de ser”. Era a que tinha escolhido naquele dia, uma musiquinha bacana de um cara legal que tem barba, usa camisa de flanela, toca acordeão (ou acordeom?), etc. Tem uma garota que é tipo a dupla dele, então os dois gravaram esse clipe, o clipe da música, numa dessas cidades humildes...

Modos de inventariar

Inventariar é, das tarefas que conheço, uma das mais prazerosas. É ampla, incansável e infinita. Um olhar despreocupado capta centenas de milhares de objetos cotidianos que podem ser dispostos em fila, caixas, em seguida classificados, etiquetados, adornados com pedaços de fita crepom, analisados e admirados a cada novo dia. Esses objetos jamais irão se esgotar. A janela do apartamento tem sete jarros de plantas, dois dos quais abrigam cactos: um em forma de pênis e outro bem pequeno, não passa de um grão de qualquer coisa, esverdeado, que tenta crescer mas, três dias depois, a despeito da água e do sol ministrados cuidadosamente, morre. Agora mesmo, estou me preparando para inventariar: o terreno ao lado do condomínio, os telhados das casas vizinhas, o tampo inox do fogão quatro bocas, os livros, as marcas nos fundos de uma construção próxima, as árvores do parque, os desenhos nas cadeiras da linha 666 ou 301 ou 402. Outras propostas de inventários devem surgir antes ou depois que...

Assembleia abraça João Sorrisão

Publicado na Aerolândia Via Aguanambi , jornal O Povo, 19/08/2011 Foi com alguma surpresa que o departamento de marketing da Rede Globo recebeu a informação de que não apenas jogadores de futebol haviam aderido à moda do João Sorrisão, boneco infame que, animado por força exógena, se limita a ir para frente ou para trás. “De repente, toda a equipe responsável pela criação do João, do estagiário ao designer, se entreolhou”, conta, ainda sobressaltado, David Manzo, gerente especial da empresa e responsável pelo visual aspect do programa Esporte Espetacular . “Soubemos ali mesmo que tínhamos ultrapassado as fronteiras do ato comunicacional puro e simples e entrado no imaginário das pessoas”, orgulha-se. “O Tadeu (Schmidt) bolou de rir e a Glenda (Kozlowski) quase se mijava”, revelou um contínuo da produção de Insensato Coração . Ele ia passando na hora, colou o ouvido atrás da porta e escutou tudo. Não é para tanto, claro. Todavia, causa espécie o fato de que a Assembleia Legislativa...

Pensar é ir embora

Antes mesmo de entrar no bar, sua cabecinha distraída rodava um filme que, na prática, só começaria pra valer dali a algumas horas: nesse filme, ela se despedia de todos, dos amigos e dos recém-conhecidos, encolhia-se inteira pra atravessar um corredor espremido entre duas mesas bastante alegres, curvava o corpo para dar beijinhos nos mais queridos e acenava sem muito entusiasmo para colegas distantes. Tudo isso ela planejava enquanto punha os pés metidos em Melissinhas vermelhas no assoalho maltratado do bar da moda. Chegava, mas queria ir embora. Só que disfarçava legal. Pra ser bem sincera, não gostava do bar da moda, não suportava os pés sujos, uns tais hypezinhos mas ainda assim da moda, não curtia beber sozinha em casa e, porque convinha manter-se perto dos outros para não se perder tanto, se impunha uma rotina social que incluía: 1. dançar, 2. ir ao cinema e 3. ir a festas com amigos. Dos três, cinema e amigos eram ok, amava as duas coisas, mais os amigos que o cinema, claro, ...

Por que sou retrô

Eu penso três segundos apenas e, diferentemente de Baudrillard e todo esse papo de desmitologização do passado, logo chego à conclusão de que sou retrô porque me identifico com a maneira de se vestir daquela época, os anos dourados do rádio e, depois, da televisão, do rádio e da TV, eu acho, e depois porque o penteado daquelas donas de casa nas propagandas de geladeira e máquina de passar eram tão bonitos!, touceiras de cabelos presos num lindo coque, as roupinhas com caimento perfeito, vestidinhos bem comportados, discretos, brincos, pulseiras, batom discreto, tudo muito discretinho, rímel? Não sei se tinha rímel, mas uso como se houvesse e integrasse o rol de coisinhas que as mulheres daquela época, não as pin ups, as pimentinhas, estou falando das mulheres comuns, as donas de casa, como se elas usassem no dia a dia, daí vêm as bolinhas, as manguinhas, as sapatilhas, as bolsas pequenas ajustadas ao corpo, fico tão bonita metida nessa auréola old fashioned que ninguém imagina, m...