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Medo da queda, do baque surdo da queda

Um dia a personagem amanheceu desejando convencer-se de que estava mal, mal das pernas, dos nervos, mal da boca, do peito, mal dos braços, mal dos sonhos, mal dos lábios, do pescoço, mal do umbigo, das coxas, dos pés, mal das costas. Mas não conseguiu. Não de todo, porque amar é realmente difícil, nem todos amam e, entre os que amam, há mesmo aqueles que se desperdiçam, se distraem enquanto o amor, esse sentimento volátil, esse sentimento concreto mas volátil, concreto, volátil mas também caprichoso, esse mesmo sentimento chamado enigmaticamente amor dobra à esquina procurando outro endereço. Então, por ser triste, por querer ser triste, por não querer mas ser triste ainda assim a contragosto e também por ler tanto e tão depressa e aspirar ardentemente a qualquer condição que a possa fixar para sempre num sopé de pedestal, ela acorda e se programa para ser alegre Mas só consegue enlutar-se. Só há o rastro cego dos dias, as roupas sujas, a alegria da família, o curso superior, o namorad...

As horas não têm fim

Se não há dinheiro, se não há conta e se não há árbitros verdadeiramente dispostos a separar o joio do trigo nessa disputa trivial, o que resta são as sementes do feijão que nunca jamais vingou porque aquele algodão, aquele algodão usado fora anteriormente castigado por lágrimas de crocodilo. Estado de consciência: levemente sonolento.

Há tormentas no paraíso?

De todo modo e de modo algum confesso haver estado mergulhado nos últimos e derradeiros instantes num mar de questões por absoluto indevassáveis, por absoluto cheias desse caráter dissensual, cheias desse sem jeito sem jeito sem jeito de ser. Querem experimentar? Experimentem. Tudo bem. Tudo cabe. Tudo pode. O que vale no fim e no começo e mesmo no meio são as feridas abertas, mas fechadas. Abertas mas fechadas, abertas e fechadas. E as feridas de fachada? Essas não contam. Ouço ali, aqui, acolá: que fazem nos fins de semana? Vão a festas, deitam fora pesadelos ruins, reciclam ódios figadais? Eu jogo. Se me pedem “Fica”, eu saio, se me dizem “Fale”, eu calo. Se exigem reciprocidade, leio Caras . Se querem morango, trago chocolate. Se ambicionam dinheiro, empobreço. Se querem fé, dou incredulidade. Ovelhas negras. Sendo assim, digo: hoje demos início ao novo tempo. Terei dinheiro. Algum. De resto, de reto, de rato, de rito. Dinheiro para as barras de chocolate, para os filmes, para as ...

Arbitrando entradas maldosas

Mas há também a segunda-feira, a segunda-feira repleta, desvairada, a segunda sem segundas intenções. Porque são dóceis, assépticas, cheias de um entusiasmo leviano. Querem ser quinta, mas são apenas segunda. Querem ser cheias, mas são faltas do melhor pedaço. O pedaço que falta. Querem bailar, mas ficam sentadas no canto do salão à espera do par perfeito. As segundas sempre aguardam sempre. Muito tempo, alguns comentários, um giro inteiro no ponteiro das horas medidas. Fábio, leitor inveterado, quer saber: quem é Oskar? Thalita, leitora difusa mas queridíssima, exclama alto. A Fábio: Oskar não sou eu. Sou apenas o cura-dor. Diz lá: “curadoria, Henrique Araújo”. Disponho dores, apaziguo ardores, suavizo odores. Nada mais, nada menos que isso. Se me perguntam “És gerente?”, devolvo um “talvez” sem força, bamboleante, e vou embora para a esquina beijar carrosséis de fumaça, abraçar rodopios invisíveis, cheirar tabletes de perfumes. De passagem, compro pastel e refrigerante na rua da esco...

Quando, quando...

Quando ouvi tudo, entendi tudo. Você estava ali, sentada. E ele também. Você disse esperei tanto tempo, e, mesmo não ouvindo nada, mesmo não vendo nada, ele te beijou. E nessa noite você fingiu ter sono para não parecer insone, fingiu ter fome para não parecer faminta, fingiu normalidade mas escondia uma rajada de abelhas nos olhos. Nessa noite, você conta, eu não dormi. E isso foi há tanto tempo. Agora, parece ontem. Tenho ciúme. Do caderno. Ciúme. Sei que você não viu nada, sei que não vimos, que o tempo passou, as cordas se romperam, as quintas-feiras, as segundas são tão diferentes, mas, mas, mas, pense comigo, o sentimento é tão estranho. Tão estranho. Tão estranho a ponto de não lhe interessar sobremaneira o que penso, ele vem e se aloja, vem e se hospeda, vem e se incrusta, vem e se enrosca porque do outro lado do balcão existe apenas eu. Eu. E eu, já disse inúmeras, centenas, milhares de vezes, quando estou assim desse jeito, assim sem defesas, assim repleto de muralhas que se ...