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Luta de classes na janela do avião

Jamais supus que a janela do avião fosse esse triângulo das bermudas da moralidade nacional, o lugar onde se perdem os referenciais e os códigos de civilidade se dissolvem entre bifurcações e outros dualismos. Afinal, ceder ou não o assento tornou-se questão que mobiliza a audiência a tal ponto que tudo o mais – da violência policial ao fracasso do time do coração – é apenas nota de rodapé ante a enormidade abismal do impasse que se coloca. Você trocaria de lugar com a criança cujos apelos audíveis fariam qualquer um de coração mole assentir de pronto, sem auscultar os batimentos de suas próprias lições de formação, ignorando o impulso de ficar apenas para sentir o prazer de contrariar esse pequeno Godzilla? Posta assim, talvez a questão acabe por perder complexidade, reduzindo-se a mera polarização. Mas é preciso ir além. Primeiro, convém entender o que significa um aeroporto para a classe média brasileira. Melhor: o que significa estar no avião ocupando uma cadeira pela qual se pagou...

A coisa da coisa

Há dias me pergunto se coisar é uma coisa nossa, tipicamente cearense, como a vaia, a sandália do Espedito Seleiro ou a mania de calça jeans no shopping aos domingos. Se, nessa coisa de coisar, há mais coisas do que supõe nossa vã filosofia alencarina. E, sendo ou não uma coisa da terra, se há algo por trás desse cacoete de empregar uma coisa sem rosto nem contorno para dizer outra coisa que não sabemos, mas que todo mundo entende de cara. É uma coisa absurda.  Lembro do palhaço Tiririca, que não sabia coisa com coisa antes de se eleger deputado e que, durante a campanha, prometia explicar como funcionava essa coisa da política no Brasil. Embora estivesse claro que Tiririca estava coisando com a nossa cara, ele foi eleito com milhões de votos. Uma coisa nunca antes vista. Quatro anos depois, entretanto, o palhaço continua coisando as suas coisas sem que ninguém se dê conta de como a coisa toda chegou a esse ponto.  Mas Tiririca, um ardoroso defensor da coisa, não está sozinho....

Dias e horas

Escrevo durante o intervalo de sono de minha filha, um cochilo intermitente repleto de movimentos bruscos de pernas e braços e pequenos grunhidos de contrariedade disparados como flechas e só amenizados com leite e braço. Tudo em redor se regula por sua respiração. Mesmo os ritmos da casa, normalmente mais barulhenta, se alternam conforme as ondulações de seu corpo recém-nascido. Os gatos mais quietos, as cortinas pousadas em leveza, as portas em mansidão, os aparelhos em dormência. Quando dorme, dormimos. Quando desperta, é sobressalto. De repente, noto os seus cabelos muito pretos e a pele mais para o café. Lembro de minha avó, os olhos como duas esferas escuras agora cravados em mim, inquiridores, certos de que tenho alguma resposta, seja qual for sua pergunta. Levei esse novo do Zambra comigo pra maternidade como um objeto ao qual pudesse me apegar, reduzindo a ansiedade. Foi uma coincidência que o livro se destinasse ao filho, um romance epistolar que percorre o caminho de volta n...

Desconfie do senhor Miyagi

Não sei quantas vezes os médicos erram por dia no diagnóstico do sexo dos bebês, mas suponho que não sejam tantas. Imagino que, entre fluidos placentários e outras substâncias misteriosas que orbitam o fiapo de gente em formação, haja mil razões para errar e nenhuma para acertar. Que os fetos, encaracolados na bolsa uterina como caramujos nas conchas, não colaborem, cruzando as pernas como charmosas modelos posando para revistas de moda. Imagino também que a escuridão primordial dentro da barriga da mãe seja um fator impeditivo da acuidade visual da genitália. Na minha cabeça, determinar o sexo dos bebês é mais ou menos como determinar o dos anjos: uma atividade esotérica, mais para o jogo de azar do que para o rigor da medicina, regida por leis que contrariam o bom-senso, a racionalidade e, eventualmente, a paciência de pais e mães. Acontece que, munidos da alta tecnologia, equipados do saber acadêmico, vacinados com as doses necessárias de desconfiança que a ciência lhes aplicou e a...

Conversar com fantasmas (ii)

 Que rastros a falta de imagens dos homens que se casaram com minhas avós produziu na narrativa fotográfica da família a partir do único álbum que restou íntegro desde o início da década de 1980, ano de meu nascimento e data inaugural da confecção dessa reunião de fotografias? O álbum empobrecido que tenho agora em mãos, mas que me recuso a abrir, reduzido ao osso após tantas perdas, falhas de arquivamento e ações múltiplas de deterioração de suas páginas.  As fotos que narram meu próprio crescimento, uma história interrompida por volta dos 18 anos, quando civilmente, para todos os efeitos, nos tornamos adultos. Todas as fases demarcadas com seus momentos-síntese: o batismo, a cerimônia de doutores do ABC, as férias escolares, o banho de mar, uma pose em frente ao monumento em homenagem ao esgotamento sanitário, uma com os irmãos na festa de aniversário, mais uma do meu aniversário de cinco anos, uma foto ao lado do pai, que tem uma bola a seus pés mesmo sem nunca ter sido mui...

Desproduzindo conteúdo

A vida degenerou em excesso de conteúdo, matéria-prima vazante que transborda por todas as latitudes, cada usuário o usurário de si mesmo, o explorador de sua própria mão de obra, da qual não extrai qualquer ganho salvo uma ou outra ninharia, com a qual se contenta ao final dessa jornada camusiana rumo ao abismo. Por que produz, então? Porque o horizonte é o da imediata monetização, da rápida conversão de toda experiência ou trivialidade no papel-moeda digital que estrutura a elaboração narrativa, alimentando-se a roda do engajamento dia e noite, seja no discurso textual ou no audiovisual (da propaganda ao cinema, passando pelo jornalismo). Disso são exemplares atualmente esses tantos vídeos com legendas, expediente cuja funcionalidade parece ter se perdido de vez. Antes empregadas para assegurar a acessibilidade, agora operam não mais como um apêndice, mas como um adorno da encenação que, de tão extravagante, acaba por ocupar toda a cena, esvaziando o sentido de qualquer lógica de tr...

Necessário, atual e urgente

Leio que tal obra ou qual filme é não apenas atual, mas também necessário, de modo a enfatizar uma ideia já presumida quando se diz que um produto qualquer interpela o presente de muitas maneiras, ou seja, que é contemporâneo, naquele sentido atribuído por Agamben. O parafuso começa a dar mais uma volta, porém, quando, além de atual e necessário, o livro é também urgente – ou o filme, ou o espetáculo, ou aquele comentário certeiro na rede social e por aí vai –, o que faz de imediato acender um alerta laranja, que começa a piscar intermitentemente, produzindo apreensão e algum grau de histeria tendo como música de fundo um zumbido crescente. Ora, não bastassem a atualidade, predicado já de bom tamanho, e a necessidade, que dispensa comentários, visto que se impõe por si, havia de sobra essa urgência superlativa que desautorizava acréscimos, validada unicamente numa tautologia: era urgente porque se tratava de uma urgência, e a urgência, por sua vez, amparava-se na natureza explicitament...