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Desconfie do senhor Miyagi


Não sei quantas vezes os médicos erram por dia no diagnóstico do sexo dos bebês, mas suponho que não sejam tantas. Imagino que, entre fluidos placentários e outras substâncias misteriosas que orbitam o fiapo de gente em formação, haja mil razões para errar e nenhuma para acertar. Que os fetos, encaracolados na bolsa uterina como caramujos nas conchas, não colaborem, cruzando as pernas como charmosas modelos posando para revistas de moda. Imagino também que a escuridão primordial dentro da barriga da mãe seja um fator impeditivo da acuidade visual da genitália.

Na minha cabeça, determinar o sexo dos bebês é mais ou menos como determinar o dos anjos: uma atividade esotérica, mais para o jogo de azar do que para o rigor da medicina, regida por leis que contrariam o bom-senso, a racionalidade e, eventualmente, a paciência de pais e mães.

Acontece que, munidos da alta tecnologia, equipados do saber acadêmico, vacinados com as doses necessárias de desconfiança que a ciência lhes aplicou e amparados por mecanismos de sondagem das menores ranhuras uterinas, a maioria dos médicos costuma acertar se é menino ou menina. Uns poucos trocam as bolas. Foi o caso do nosso.

Os leitores que me acompanham devem se lembrar da história do pendulozinho virado para cima (menino) ou para baixo (menina). Só agora é que me espanto: como não pude desconfiar dessa simplificação gráfica, meu Deus?! Devo ter ficado tão hipnotizado com a beleza da imagem de uma alavanquinha que sobe ou desce quanto o Daniel Larusso com a lição do senhor Miyagi: "Pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo" etc. Assim como o jovem aprendiz de carateca engoliu a lorota do velhote que não queria lavar o carro, eu também engoli a oscilante verdade do pêndulo.

Contei a história aqui mesmo, no dia 27 de fevereiro, um pouco antes do Carnaval. Era um pedido de desculpas por haver desejado tanto uma filha e tão pouco um filho e, no fim das contas, ter descoberto que seria pai de um menino, a quem, sob protesto da família e do susto de parte dos amigos, demos o nome de Joaquim. Nomear é amar, todos sabem. E, no ato de chamá-lo pelo nome, comecei a conhecer o amor por Joaquim e adivinhar-lhe os passos, do jardim da infância à faculdade, passando por chateações da vida adulta, como solicitar a segunda via do CPF e reconhecer firma no cartório - ou, pior, torcer pelo Vasco.

Uma bobagem, como se pode ver, mas o tipo da bobagem que os pais de primeira viagem se permitem, que é fantasiar a caminhada dos filhos por inteiro, do nascimento à velhice, incluindo episódios particulares, como os dentes moles da primeira infância e as decepções amorosas da adolescência. Isso eu também disse no pedido de desculpas e se repito agora é apenas para enfatizar: os pais não aprendem com os próprios erros. Os médicos também não.

Agora, um pouco antes da Semana Santa, conto outra história. Na última segunda-feira, voltamos ao hospital para uma nova ultrassonografia. Revi a mesma cena: uma dúzia de barrigas dilatadas, colunas vergadas sob o peso dos astronautas que a nave-mãe transporta nos módulos lunares. Nada havia mudado: a secretária mal-humorada, o café fraco, o jarro com plantas de plástico, a TV ligada na Ana Maria Braga, a ordem de atendimento, o rosto triste de um ou outro paciente. O médico era o mesmo, a auxiliar também. O "doutor" até calçava o mesmo par de tênis amarelo - como não pude desconfiar desse detalhe tão extravagante?

Apenas duas diferenças em relação à visita anterior. A primeira é que, intuitivamente, decidimos gravar tudo. Para explicar a segunda diferença, apelo a uma metáfora: feito aos cinco meses de prenhez, o exame constatou que, entre fevereiro e abril, o pendulozinho havia deixado o polo norte e ido para o sul. Estava para baixo. Era menina. 

E foi assim que o seu pai começou a bolar as duas primeiras lições de casa, Cecília. A primeira: tudo que sobe, desce; tudo que desce, sobe - o que importa é o amor. E o meu por você é sobrenatural. 

A segunda e mais preciosa lição, porém, é: desconfie do senhor Miyagi. 

Um beijo grande. Seja bem-vinda, filha.
 
Crônica publicada em 17 de abril de 2014 no O POVO

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