Pular para o conteúdo principal

A coisa da coisa


Há dias me pergunto se coisar é uma coisa nossa, tipicamente cearense, como a vaia, a sandália do Espedito Seleiro ou a mania de calça jeans no shopping aos domingos. Se, nessa coisa de coisar, há mais coisas do que supõe nossa vã filosofia alencarina. E, sendo ou não uma coisa da terra, se há algo por trás desse cacoete de empregar uma coisa sem rosto nem contorno para dizer outra coisa que não sabemos, mas que todo mundo entende de cara. É uma coisa absurda. 

Lembro do palhaço Tiririca, que não sabia coisa com coisa antes de se eleger deputado e que, durante a campanha, prometia explicar como funcionava essa coisa da política no Brasil. Embora estivesse claro que Tiririca estava coisando com a nossa cara, ele foi eleito com milhões de votos. Uma coisa nunca antes vista. Quatro anos depois, entretanto, o palhaço continua coisando as suas coisas sem que ninguém se dê conta de como a coisa toda chegou a esse ponto. 

Mas Tiririca, um ardoroso defensor da coisa, não está sozinho. Há muito mais gente fazendo umas coisas estranhas diante das quais a gente para e pensa: que coisa é essa, afinal? Não há resposta para tanta coisa. 

Dou outro exemplo: uma deputada que, a fim de evitar que artistas coisem suas coisas tranquilamente, propõe cortar a coisa pela raiz. Para tanto, apela à força da Polícia Militar, que nunca é uma coisa boa nem deixa barato quando dá de cara com uma coisa que não convém à moral e aos bons costumes - duas coisas que ninguém sabe definir muito bem o que são, mas em nome das quais já foram cometidas coisas bárbaras. 

Há alguma coisa em comum entre as coisas do deputado e as coisas da deputada? É possível. Ambos estão coisando coisas diferentes, mas terminam por se aproximar numa coisa: o palhaço entra no banheiro, faz as coisas e depois se coisa com nosso voto. Já a deputada não quer nem ouvir falar de qualquer coisa que tenha a ver com aquela coisa: prefere que se dê outro nome para todas as coisas que se referem àquela coisa, mesmo que, para isso, seja necessário mentir ou impor um jeito autoritário de ver as coisas, sejam elas quais forem.

Mas uma coisa legal é que as coisas estão melhorando apesar de muita coisa ruim acontecer todo dia. Tem o lance do Bolsonaro, que virou réu. Tem o do amigo descobrindo coisas no próprio corpo. Tem uma amiga que passou no mestrado estudando uma coisa que não entendo. Tem as ruas cheias de coisas novas. Tem a praia coisadinha. Tem o mês de julho e a temporada de ventos fortes, que entram pela janela coisando tudo na vida da gente.

E se a coisa em si não for uma coisa genuinamente cearense, não tem problema: a gente passa a coisar com o biloto, que, segundo me disseram, é uma coisa só nossa de verdade. Ninguém mais no País, talvez no mundo, tem biloto pra coisar. Imagina o desespero da deputada quando souber que muita gente anda coisando com o próprio biloto ou, pior, com o biloto alheio. Vão precisar de um policial para pastorar cada esquina da cidade, cada teatro, cada pedaço de praia. Vai ser uma coisa bonita. Uma gente toda coisada sendo feliz sem saber das coisas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d