Jamais supus que a janela do avião fosse esse triângulo das bermudas da moralidade nacional, o lugar onde se perdem os referenciais e os códigos de civilidade se dissolvem entre bifurcações e outros dualismos.
Afinal, ceder ou não o assento tornou-se questão que mobiliza a audiência a tal ponto que tudo o mais – da violência policial ao fracasso do time do coração – é apenas nota de rodapé ante a enormidade abismal do impasse que se coloca.
Você trocaria de lugar com a criança cujos apelos audíveis fariam qualquer um de coração mole assentir de pronto, sem auscultar os batimentos de suas próprias lições de formação, ignorando o impulso de ficar apenas para sentir o prazer de contrariar esse pequeno Godzilla?
Posta assim, talvez a questão acabe por perder complexidade, reduzindo-se a mera polarização. Mas é preciso ir além.
Primeiro, convém entender o que significa um aeroporto para a classe média brasileira. Melhor: o que significa estar no avião ocupando uma cadeira pela qual se pagou regiamente para se deslocar encolhido por duas ou mais horas, a depender do destino final, servindo-se da pior comida fornecida em porções minimalistas.
Voar é signo por excelência de poder econômico, disso já se sabe desde sempre. Logo, a rinha vista no vídeo a esta altura já famoso é entre iguais, digo, entre representantes do mesmo campo, enfrentando-se munidos da mesma arma: autoconfiança conferida pela certeza de que algo ali lhe pertence para além daquilo pelo que se efetivamente pagou.
Mas o quê? De um lado, o direito de gravar uma outra, expondo-a a situação vexatória, pressupondo que se está com a razão pelo simples fato de que o ato de trocar de lugar com uma criança constitui uma situação cotidiana que não deveria levar a pensar: apenas deixa-se o lugar, sem pestanejar.
O contrário disso, ou seja, a negativa em atender ao pequeno chorão que esperneia para viajar na janela do avião, é de imediato traduzido como desumanidade, falta de empatia e tudo o mais.
Eis o quadro conflitivo que se armou muitos quilômetros acima do nível do mar: quem tem mais privilégios, a criança entronizada e desde já preparada para exercer maquinalmente seu poder ilimitado sobre as outras formas de vida? Ou a consumidora cuja se segurança se ampara no conforto ontológico de que detém direitos inalienáveis conquistados mediante transação financeira?
Não é uma situação de fácil resolução. Como espectador, porém, admito que pude fruir com deleite essa tensão que se instalou. Tudo nela me divertiu, a teatralidade no embate entre posturas diametralmente opostas figuradas naquele espaço de desfile de classe, a imperturbabilidade estoica da passageira sentada, sua expressão pétrea e inescrutável movendo-se em lenta varredura, como uma IA superdesenvolvida que se autonomizasse e passasse no instante seguinte à total indiferença diante da raça humana, não importando suas demandas egoicas infantis ou adultas.
(Isso é cinema).
E, no outro extremo, o jorro agônico da mãe em fúria, a explosão mal disfarçada de consumidora insatisfeita fazendo-se passar por crítica de arte escandalizada ante o esvaziamento de humanidade da opositora, apresentada como um tipo desprezível capaz, em pleno século XXI, de gestos odientos e brutais, tais como negar trocar de cadeira com o príncipe regente prestes a lhe cortar a cabeça.
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