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Marcas

Uma cicatriz, uma mancha escura, um borrão no rosto, estrias nas coxas, outra cicatriz no braço e a linha dos olhos um pouco torta, todo o lado esquerdo pendendo para baixo, como a anunciar que certo conjunto harmonioso havia estado ali há muito tempo mas já tinha ido embora. Daí que a sola do sapato se gastasse mais do lado direito que do esquerdo, daí que as camisas apertassem mais no braço direito que no esquerdo, daí que os lábios repuxassem mais no direito que no esquerdo e os olhos diferissem no modo como fixam um objeto a sua frente. Tudo um desalinho, desarranjo, mas talvez fosse assim, assim talvez tivesse aprendido a enxergar o torto e o enviesado, o certo e o errado equivalendo-se porque em algum momento eles entrariam em conjunção. E a disjunção fosse a etapa momentânea, o torto por reto e vice-versa. Agora tinha aula e na aula desceria ao inferno acompanhando o personagem que nos círculos depara com Beatriz. Agora usaria a medida incerta de sua vista p...

Matéria escura

Então a gente estava no carro voltando e tocava uma música, um axé antigo, tipo Ivete no começo da carreira,  e é incrível como essas músicas são bonitas, eu pensei, como são parte já de qualquer coisa afetiva daquele tempo difícil de precisar mas no qual a gente se debatia com a vida sem saber que era vida ainda o que a gente tinha nas mãos, naquele tempo eu só achava que as coisas eram como eram porque o tempo era aquele e não outro, se fossem meus pais teriam dificuldades diferentes das minhas, mas depois fui entendendo que a vida muda pouco ou quase nada, a vida, como naquela música que fala de amor e outras coisas assim em ritmo alucinado, era uma matéria escura que vamos entendendo menos ainda à medida que o tempo passa. E já passou tanto. 

Levantar a vista

Saí pra fumar e levantei a vista, levantar a vista equivale a tropeçar, só que pra cima. Tinha uma varanda, duas, na verdade, luzes acesas e uma pessoa contra a luz olhando pra baixo. Pensei na probabilidade de que duas pessoas olhando na mesma direção mas em sentido contrário se encontrem uma no que a outra projeta de si. Era pouco provável, quase zero, então o flanelinha acenou para o carro parado que impedia outro carro de sair que impedia outro carro. Uma sucessão de impedimentos no meio da madrugada. E a pessoa ali na varanda olhando pra tudo com o mesmo desinteresse insone que eu, a diferença é que talvez não tivesse bebido e eu sim, a diferença é que talvez não estivesse fugindo e eu sim, a diferença é que talvez não precisasse levantar a vista e eu sim. 

Esquecimento

Guardei uma frase mas a perdi. Acontece com frequência, lembrar e perder, acreditar que a manterei na cabeça até chegar em casa, quando então sentarei e escreverei a partir dela, sobre ela.  Acontece que agora que cheguei tento procurar e não encontro e se me esforço parece ainda mais inútil porque não há um vestígio, uma nesga do que teria sido se ainda estivesse aqui. Um título? Uma frase inteira?  Um verbo apenas? Não sei. Apenas que tinha a intenção de, a partir dela, sobre ela, em torno dela, começar qualquer coisa que julguei interessante na hora mas que agora me parece apenas inútil. Porque a perdi e se a perdi estava fadada ao esquecimento.  

Um outro exercício

Agora estou na água novamente. Corri um pouco por medo, um pouco por frio.  Tem sempre esse instante em que vista do mar Fortaleza parece a melhor cidade do mundo e talvez seja mesmo, uma ponte ao lado, do outro espigão e na frente o Mincharia, então continuo nesse passo torto do bairrismo meio brega ou do sentimento fácil. Sentimento fácil, repito, e já estou dando umas braçadas, mas no fundo queria mesmo era estar na areia deitado fumando e olhando o céu sem qualquer nuvem, apenas uma mesma tonalidade de azul. A areia cedendo aos poucos e desenhando-se no formato do corpo, que fica ali como uma marca d’água. Solzinho fraco, coado, talvez veja um filme antes de dormir, um terror que me fará querer a mesma vida sempre. Uma menina passa na bicicleta, depois outra, acho que vou deixar o carro molhado e todo sujo de areia, lembro do ar-condicionado do cinema e em seguida planejo não me atrasar tanto para o aniversário da minha sobrinha, organizo a semana mentalmente, se...

Paraquedas

Eu li que se quiser, pode, um jeito carinhoso que inventamos pra falar de uma maneira indireta sobre as coisas que estão fora do nosso alcance, veja se consegue pensar nisso. Formar frases já é algo a que se deva ter o máximo de atenção, imagine tentar provar o que quer que seja, então se quiser, pode. Pode o quê? O desejo sujeito ao querer, disso até gostaria de gostar, ter uma ninharia de simpatia, mas escrevo num domingo agradável, o sol começando a cair, daqui a pouco saio de bicicleta e então encontro o mar e nele o cara que passa com uma caixa de som tocando sucessos do tempo da minha mãe. Se quiser pode, pode se quiser, difícil é querer, mais ainda poder. Fiquei desconfiado, sempre desconfiado. Li um tanto de poesia e passeei pelas redes, nunca o sentimento prazeroso de estar, apenas esses sustos que as fotos e as mensagens causam na gente quando a gente se depara com o outro preparando-se para assumir aquela postura conhecida , é mais ou menos como testemunhar os ...

Máquina de pinball

A música alta. Dança rodopiando, pensa em ir até o bar mas fica no dilema: se for agora pode perder a música, e tudo que não quer é perder a música, não essa, esperou a noite inteira que tocasse e ela tocou, então quer simplesmente ficar e curtir, dançar um pouco solto, um pouco preso, afinal não se dança nunca sozinho nem totalmente acompanhado. A música para, ele resolve comprar mais cerveja, pergunta ao grupo se mais alguém quer e todos dizem sim, abre espaço entre homens que vão passando a mão no seu corpo como um pedágio e chega até o balcão onde pede quatro cervejas. Ele volta. Queria ficar, mas volta. Outra música da noite começa e o salão agora se esgoela cantando uma versão em forró de um desses sucessos românticos internacionais, é uma espécie de hino da geração.   Dá goladas na cerveja antes de distribuir, estão todos de olhos fechados cantando para o teto, os dedos das mãos em riste indicando que algo vai acontecer, algo pode acontecer, algo tem de acontec...