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Anos-luz

Às vezes a gente se sente um pouco abismado quando as bússolas param sem explicação. É como ir ao supermercado sem a lista de compras e tentar lembrar cada item que falta em casa. Pelas prateleiras, vai tateando produtos e rótulos até se convencer de que tem tudo à mão. Mas sempre falta, e é essa falta inexplicável que aflige.  Duvido que alguém hoje, além de pessoas muito ciosas do próprio corpo e das próprias ideias, saiba ao certo para onde estão empurrando o seu carrinho de compras. Se em círculos ou em linha reta. Isso não é muito triste, é apenas como as coisas são. Triste mesmo é a notícia de que nenhuma das mais de 200 meninas sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram vai ser encontrada um dia. Triste é imaginar, por um segundo sequer, o que essas meninas sofreram ou sofrem. Triste é conciliar o relativo bem-estar de parte da humanidade, gozando tudo que o engenho humano é capaz de inventar, com o assassinato em massa de garotinhas. Um dia todos nós vamos ter de...

Entretecer/entristecer/entreter

Entreter é um vício bem bacana, do tipo recomendado para crianças e adultos, mas talvez principalmente para adultos, já que homens e mulheres crescidos parecem ter trocado de posição com os menorzinhos. Agora até as roupas servem a ambos. Cada frase e notícia e história embalada no invólucro do entretenimento é uma delícia de sonho que torna abominável cada notícia ou história ou frase servida sem a camada polvilhada de doçura. Sem entretenimento tudo é tão chato, tão débil, tão desafortunadamente desinteressante, tão arduamente difícil de percorrer. Imaginem a aridez de um livro em cujo centro não esteja a preocupação de divertir e entreter, fazendo as horas passarem com essa sensação agradável de que já não precisamos decodificar nada, tudo é claro e até as sombras encontradas no caminho são apenas a paisagem artificialmente sugestiva de dificuldades nunca realizadas. Triste da notícia ou do homem ou da vida que não almeje também ou principalmente o divertimento. Triste de ...

Abismo

Até hoje não entendo aquele fosso do desenho do He-man, uma queda livre, uma lonjura sem tamanho, um cânion de onde ninguém saía, tampouco caía. Num desenho infantil dificilmente uma pessoa, ainda que vilã, seria castigada tão cruelmente assim. Mas a queda estava lá, parada, a meter medo. O fosso foi minha primeira experiência com o infinito. Antes de haver deus, havia a queda livre. A ideia de algo tão fundo que, mesmo que passasse a vida inteira caindo, jamais chegaria ao final. O tempo suspenso. Daí que fosse inapropriado falar simplesmente final. Era mais um despencar contínuo solitário, uniforme e inapelavelmente vertical.  Pensando bem, até que não seria ruim. A eternidade em queda. Um tipo especial de inferno. Um inferno pras crianças malcriadas. O He-Man gostava das lições de moral ao fim de cada episódio. Começava assim: na história de hoje, nós aprendemos... Assisti-lo, logo, pressupunha um evangelho: amizade, respeito, camaradagem. A lista de boas a...

Chuva

E se eu saísse nessa chuva. E me molhasse. E tremesse de frio e depois voltasse e enxugasse rosto, cabelo, braços. Depois, já seco, tornasse a molhar. E assim por muito tempo. 

O problema do papá

Eu saquei na hora que a cuidadora da creche estava mentindo por causa do papá. Minha filha ainda não fala papá, pensei, apenas mamá e às vezes também a variável mais fechada, mamã. Papá, nunca. Por que, então, dizer que ela tinha começado de repente a dizer papá, exatamente quando ninguém além dela estava lá para ouvir? Duvidei. Mais que duvidei, suspeitei que fosse mentira. Uma dessas mentirinhas inocentes que a gente conta para agradar os outros. Sim, o vestido caiu bem. Nossa, o corte ficou ótimo. Olha, como você aprendeu inglês rápido. E por aí vai.  Então era isto: a cuidadora queria me agradar me fazendo lembrar que, entre tantos mamás, minha filha havia conseguido articular um papá. Bom, talvez tenha funcionado com outro pai. Tenho insistido no papá desde que ouvi minha mulher começar a campanha do mamá, uns dois meses atrás. A diferença é que a campanha dela funcionou e a minha, não. A goleada foi tão acachapante que, para me agradar, ela mesma ent...

Mensagem

Cada um com sua esquisitice.  A minha tem sido escrever no corpo da mensagem, como se enviasse um e-mail pra alguém, mas acabasse mandando pra mim mesmo. Leio como se escrito por outra pessoa e me assombro descobrindo esses medos familiares, que se alheiam no momento do envio e se aproximam quando, segundos depois, batem à porta.  Escrito, fora, lido, dentro. O alheio é assim, depois que sai, depois que vai. Mas, ido, sido, torna a ser o de dentro. Será que expliquei direitinho? Tem certas coisas evidentes pra gente que, vistas de longe, são nebulosas. Talvez essa seja uma delas.  Me explico. Abro uma aba do navegador, entro no Gmail e começo. Três parágrafos depois, apago da memória e envio. Fico esperando. De repente, a mensagem aparece, destacada das demais por um negrito. Posso ler agora ou deixar para depois. Posso deletar ou marcar com uma estrelinha. Depende do humor.  O bom disso tudo é que a mensagem é instantânea. Elimina a espera.   ...