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Postagens

Da Ana Martins Marques

É bom lembrar lembranças dos outros como quem se oferece para carregar as compras de supermercado de outra pessoa é bom usar palavras que nunca usamos palavras que só conhecemos dos livros de botânica dos anúncios de cruzeiros dos contratos de locação é bom portanto usar palavras emprestadas nem que seja para lembrar que só temos palavras de segunda mão é bom ficar de vez em quando para dormir na casa de um amigo usar uma velha camiseta dele habitar alguns de seus hábitos usar à noite se possível um de seus sonhos recorrentes é bom encontrar uma vez ou outra pessoas que conhecemos na infância é bom nos esforçarmos por um tempo para parecer com a lembrança delas é bom topar de repente com um tanto de areia no bolso de uma calça jeans que há tempos não usamos seguir as instruções do horóscopo de um signo que rege um dia em que não nascemos vestir-nos de acordo com a previsão do tempo de uma cidade que nunca pensamos visitar é bom ao menos uma ve...

Em 2014

Estou apostando que, mesmo difícil, 2014 será o ano mágico por excelência. Guardo um pouco de esperança para 2015, é verdade, mas confesso: joguei todas as fichas no cavalo que leva esse número. Fui encorajado por um biscoito chinês cuja sorte me pareceu inequivocamente benfazeja: muita coisa pode acontecer. É tempo de foder ou sair de cima. Foder sem sair de cima. Foder sem ficar em cima.

Casarão

Um dia ainda conto essa história.  Do casarão que foi construído e depois derrubado.  Do casamento feito e depois desfeito.  Do amor vindo de longe, do amor que esperava.  Da aflição de não saber, do medo de ter sabido.  Do desejo de retorno, do excesso de volta. Do caso em suspenso, do caso encerrado.  Do cearense, da italiana.  Do Plácido, da Pierina.  Do começo e do fim e do que vem depois.  Até recomeçar com o casarão reconstruído e depois derrubado.  Numa volta que se enovela.  E assim até chegar novamente a outro canto, que é o mesmo.  Porque essa história do casarão, da memória, do pedido, da mulher, da volta e do casamento.  Essa é uma história que eu queria contar por algumas razões.  A primeira é que, contando essa história, eu poderia falar não somente do homem que construiu um palacete para uma mulher que ele amava mas que estava longe.   ...

Genealogia da sofrência

Meio de brincadeira, meio a sério, há dias tenho pensado no poder quase sobrenatural que a palavra “sofrência” projeta sobre quem a pronuncia e a escuta. É um vocábulo novo, mas já plenamente familiar para qualquer um que tenha andado de ônibus nos últimos dias. Quando o ouvi pela primeira vez, corri ao dicionário. O resultado foi este: “Nenhuma palavra encontrada”. Estranhei que tanta gente a conhecesse e, pior, a encaixasse no dia a dia com a desenvoltura de um Pasquale Cipro Neto. Pablo não é filósofo. Quer dizer, até onde pude avançar em sua biografia, disponível no site oficial do cantor, ele é o pai do “arrocha”, um ritmo baiano que, como qualquer ritmo surgido na Bahia, se espalhou pelo País como um ebola em forma de dó-ré-mi. Até aí, nenhuma novidade. Lendo um pouco mais, porém, intriguei-me com o seguinte: em sua obra, Pablo, “a voz romântica da nova geração”, propõe uma bricolage do romantismo com o suingue do axé. Tentei imaginar o cantor, cuja carreira começou ao...

TEM

A vida segue alvoroçada como nos primeiros tempos, mas talvez já não seja necessário dizer isso porque, depois de tudo, até as constatações se repetem, os sustos são parecidos, as surpresas também, de modo que repetir é menos um hábito do que uma necessidade. Repetir é uma maneira que cada pessoa encontra de, não encontrando nada, convencer-se de que o que está vendo tem pele e osso, é real, verdadeiro.   Repito: o tempo é um animal estranho, arredio, doméstico, mítico no que tem de impalpável. A gente se assusta, sempre por razões diferentes, e o tempo é uma delas. O tempo com o que tem de agonia e salvação. Passa, encolhe, retorna, mente, aclara, escurece.  Ontem mesmo tive a impressão de que parecia antes de ontem e amanhã talvez acorde com a certeza de que é outro dia. Sempre é outro dia, digo a mim mesmo.

Nua

Não deixa de ser curioso o surto de pessoas nuas na rua. Mulheres, sobretudo.  Caminhando nuas. Isso mesmo, nuas. Nuas, sozinhas, nas ruas. Exatamente assim, não há confusão alguma. Nuas e ruas rimando na mesma frase e encerrando um mistério insolúvel. O que convida a pensar sobre muitos assuntos, exceto sobre o real motivo de as pessoas, principalmente mulheres, terem resolvido, aparentemente sem razão, caminhar sem roupas pelas ruas da cidade.  O que tem chamado a atenção de quem passa ou espera o ônibus ou apenas observa da janela de casa ou do apartamento o movimento lá fora, que agora inclui uma mulher nua caminhando na rua, um passo de cada vez, a cabeça levemente inclinada, suportando dignamente sol e chuva. Todavia, o que faz, na rua, nua, a qualquer hora do dia, uma mulher?  A pergunta é intrigante e, de resto, irrespondível.  Porque nua, na rua, uma mulher pode desejar o que estiver ao alcance da imaginação, inclusive nada. Pode tamb...

Ainda os shoppings

Lamento não ter ido direto ao ponto no texto que escrevi para O Povo de hoje: a expansão dos shopping centers, e sua receptividade entre nós, é sintoma de uma cultura que atribui pouca importância ao espaço público.    A relação que pretendi estabelecer foi a seguinte: enquanto inaugurações de shoppings causam estardalhaço, mobilizando a atenção dos jornais a ponto de o assunto se tornar tópico obrigatório de conversas, áreas sensíveis da cidade se degradam progressivamente.  Citei como exemplo os parques Rio Branco e Adahil Barreto, mas poderia ter mencionado uma dezena de lugares de Fortaleza hoje relegados a segundo plano: o Cocó, quase toda a extensão da Praia de Iracema, o Farol e seu entorno, o campus do Itaperi da Universidade Estadual do Ceará.  Alguém pode argumentar: mesmo privados, os shoppings são públicos. Logo, neles o trânsito é livre.  Bom, isso não é totalmente verdade.  Shoppings são empreendimentos privados cuja lóg...