Meio de brincadeira, meio a sério, há dias tenho pensado no poder quase sobrenatural que a palavra “sofrência” projeta sobre quem a pronuncia e a escuta. É um vocábulo novo, mas já plenamente familiar para qualquer um que tenha andado de ônibus nos últimos dias. Quando o ouvi pela primeira vez, corri ao dicionário. O resultado foi este: “Nenhuma palavra encontrada”. Estranhei que tanta gente a conhecesse e, pior, a encaixasse no dia a dia com a desenvoltura de um Pasquale Cipro Neto.
Pablo não é filósofo. Quer dizer, até onde pude avançar em sua biografia, disponível no site oficial do cantor, ele é o pai do “arrocha”, um ritmo baiano que, como qualquer ritmo surgido na Bahia, se espalhou pelo País como um ebola em forma de dó-ré-mi. Até aí, nenhuma novidade. Lendo um pouco mais, porém, intriguei-me com o seguinte: em sua obra, Pablo, “a voz romântica da nova geração”, propõe uma bricolage do romantismo com o suingue do axé. Tentei imaginar o cantor, cuja carreira começou aos seis anos em serestas do Nordeste, como um híbrido de Amado Batista e Xandy (Harmonia do Samba), antípodas no cancioneiro popular.
Autor de sucessos como “Fui fiel”, “Quase me chamou de amor” e “Baby” e transitando numa zona de interseção entre o lento e o agitado, o solto e o agarrado, o ingênuo e o desabusado, Pablo acabaria por fundar uma escola do romantismo com pegada dançante, a qual depois daria o nome de “arrocha”. Uma proeza não apenas semântica, mas também física, já que, ao vagaroso e atritado do brega-romântico, o artista justapõe o frenesi coreografado do axé. Para explicar por que essa mistura resultou em sucesso, preciso voltar à galinha dos ovos de ouro de Pablo: a sofrência.
Enquanto o sofrimento designa a agonia vulgar, essa que o mais reles mortal experimenta todo dia e da qual não pode escapulir, a sofrência é uma espécie de transcendência e uma gincana dramática cuja finalidade é expiar a dor voluntariando-se a sofrer ainda mais. É, para usar um termo caro à filosofia da linguagem, um “veneno-remédio”: para ultrapassar a dor, apenas mais dor. Eis, aí, o fundamento do brega.
Difícil de entender? Não se pensarmos na sofrência como laceração espiritual que se agrava e potencializa no autoflagelo. Todo mundo sabe que, na vida, há mesmo essa categoria de gente para a qual apenas o dobro da dor é melhor que a dor em si. A sofrência, então, seria o que excede o sofrido. Parafraseando um professor de química, eu diria que toda sofrência é sofrimento; mas nem todo sofrimento é sofrência.
Não estou certo de que Pablo tivesse isso em mente quando, nos versos de “Porque homem não chora”, a música que introduziu a sofrência e reinventou o martírio da alma, narrou as agruras de um homem que, diante da indiferença da parceira, decide abandoná-la. Na canção, Pablo dá a receita do “arrocha”: um gênero romântico que conjuga a peleja que cada um escolhe viver e a liberação do corpo. No refrão já consagrado em quermesses, o baiano cantarola: “Você foi a culpada desse amor se acabar / Você que destruiu a minha vida / Você que machucou meu coração / Me fez chorar / E me deixou num beco sem saída / Estou indo embora agora / A mala já está lá fora / Porque homem não chora”.
Notem, no fraseado de Pablo, o reiterado aviso de que o narrador está indo embora, ou seja, ainda não foi. Pretende ir, mas, àquela altura, ainda está lá, plantado no umbral da sala. Está de partida, sim, mas ainda não partiu; a mala, já feita, espera na rua, e ele não deve chorar o fim desse amor. Entretanto, ao emitir sucessivos sinais de que se vai em breve, parece querer dizer exatamente o contrário e até esperar que ela peça para que fique. Seja lá por que cargas d’água o personagem sofre, e ninguém duvida de que sofra em demasia, o fato é que ele ainda a ama, mesmo quando nega - uma contradição clássica presente também em outro épico da música romântica, “Evidências”, de Chitãozinho & Xororó.
Como afeto, o sofrimento foge do arbítrio. Ninguém escolhe sofrer, e quem o evita acaba amargurado. Na contramão desse lugar-comum, Pablo diz que, não apenas é possível desejar sofrer, como, desejando-o, o homem ou a mulher pode curar as próprias feridas. Sem querer, o músico baiano modernizou o brega ao inventar um tipo de penitência temperado por um teclado à Zezo e animado por passos de axé à Sheila Carvalho. É uma mixórdia sonora que Caetano e Tom Zé talvez adorassem conhecer - se já não conhecem.