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Na rua

De passagem para deixar um recado, seja qual for, ou um abraço, seja em quem for, e não encontro nem caixa de correios nem alguém que não esteja ocupado checando o redesenho das nuvens ou se o próximo ônibus, aquele que dobra agora a esquina, vai até o shopping. Tentei parar e apertar a mão de alguém que se distraía pensando na corrida espacial e que de repente p arou para apertar não a mão, mas a ponta da orelha de outra pessoa, e ambos tropeçamos e formamos um bolo no chão e esse bolo foi confundido com uma dessas esferas de gravetos e despojos urbanos que rolam de um lado da tela ao outro nas cidades desertas dos filmes americanos. Enquanto cortava pelos do nariz e das orelhas, pela primeira vez senti que podia ser qualquer coisa, um grande ator de teatro, um jogador, um assassino ou só uma bola girando sobre o próprio eixo no meio da rua, mas preferi ser Bill Murray imitando uma grande atriz de cinema morta ainda na década de 1960, talvez setenta. Ninguém reparou ...

Sobre "Praia do Futuro", filme de Karim Aïnouz

Vou cometer o pecado maior de dizer que não gostei do novo filme do Karim Aïnouz. Cito as razões. 1. Dividido em três partes (“O abraço do afogado”, “O herói partido ao meio” e “O fantasma que falava alemão”), apenas a última reserva alguma tensão. Belo final. Aliás, como todo mundo já disse, muito parecido com o de outro filme do diretor. 2. Os dois capítulos que a antecedem, no entanto, funcionam apenas como uma longa e arrastada introdução ao conflito que de fato interessa, esteja ele na relação de Donato (Wagner Moura) com o Konrad, ou na de Donato com o irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa). (o ator cearense-pernambucano salva o filme do lugar-comum. O que o Jesuíta tinha em mãos para trabalhar o personagem de Ayrton? Pouco mais do que o clichê do irmão-herói que vai embora, deixando família e amigos para trás. No que ele transforma esse fiapo? Em potência). 3. A concentração poética, uma das tantas qualidades de Viajo porque preciso, volto porque te amo , se dilui em Prai...

Cicatriz de vacina

O problema todo era uma “cicatriz de vacina”, disse o médico, uma dessas bem comuns, redondas ou arredondadas, que praticamente nascem com a gente ou quando percebemos estão lá desde sempre, uma marca no braço esquerdo ou direito, a sua é no direito, a minha é no esquerdo, mas isso na verdade não importa tanto, apenas que fica a meio caminho do cotovelo e do pescoço, um anúncio barato informando ao mundo que a partir dali fazemos parte disso tudo, um atestado de humanidade, por assim dizer, dor aguda perdida num tempo em que não retínhamos memória de nada, carinho, choro, fome, sede, o que sentíamos imediatamente perdia-se no limbo das sensações vividas a cada dia e cada dia era novo não por força da vontade mas por imposição do corpo.  Uma cicatriz de vacina, repetiu, agora mirando algum ponto na parede, ironia da vida, mal nascemos e já precisamos nos precaver contra a vida, não exatamente contra a vida, argumentei, contra a vida mesmo, protestou o médico, a doença é parte del...

Parabéns

Zumbis pra crianças: manual de sobrevivência

Bom, bom... Voltando aos zumbis, a resposta é: não sei. Depende de tanta coisa. Depende de saber primeiro o que é um zumbi, de onde vem, para onde vai, se é da família ou foi algum dia, se parece afetuoso, há desses casos em que o morto-vivo retorna carregando algum vestígio de sentimento fraterno, fuja desses, são os piores, fingem-se amáveis apenas para comê-los mais facilmente. Disso dependerá a sua sobrevivência, conseguir distinguir primeiro entre vivos e mortos-vivos, entre vivos honestos e vivos inescrupulosos, entre os inescrupulosos que podem ajudar e os inescrupulosos que certamente irão querer tirar proveito de você. Como já devem ter percebido, não há uma regra para lidar com zumbis nem com as pessoas que estão correndo dos zumbis, sobretudo se você é uma criança e está à procura de respostas seguras, ou seja, um manual ou tutorial. Aprendam desde já, não há respostas seguras, apenas sugestões do que fazer quando a hora chegar. A hora chegando, tentem s...

Capítulo I: peixes, zumbis, infrapoderes

Há dias ou talvez semanas venho pensando na mesma história, que é uma história bastante simples, nela nada explode nem é abduzido, nenhuma motosserra separa a cabeça do restante do corpo de ninguém, não há zumbis, não por falta de tentativa, na verdade é uma história para crianças e acho que os zumbis ainda não foram aceitos entre o Lobo Mau, o Barba Azul e outros personagens infantis, talvez fique pra próxima, algo como Zumbis pra crianças – manual de sobrevivência.  O que uma criança tem que fazer caso encontre um zumbi à toa andando pelas ruas? Fugir, correr, se fingir de morta, lutar, chamar a mãe? Conto depois, muito depois. Antes disso, quero contar a história que venho tentando contar há duas semanas. É uma história simples e começa como um enunciado de questão de terceira série. Há dez peixes no aquário do Joaquim, um menino não tão esperto quanto gostaria de ser. Por exemplo, quando tenta mover objetos com a força do pensamento, falha miseravelmente, e se se...