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Vó, tô estourado

É inexpressiva a fatia da população cearense que percebeu, até agora, que o refrão “Vó, tô estourado e meu avô é o culpado” evidencia uma troca inusual de papéis familiares. Por trás da métrica livre dos versos do forró, há a sugestão de mudança nos costumes: sai a figura da avó permissiva, cuja proposta pedagógica, fundada no anarquismo e no princípio do laissez faire, laissez passer , tem o condão de mimar em excesso os (as) filhos (as) dos filhos (as), estragando-os (as). No lugar, entra o avô galhardo, desmantelado, raparigueiro, irrecuperável biriteiro. Esse avô hipotético de que fala a música não teve grande problema em se desincumbir da responsabilidade de ser o mantenedor de certa reserva ortodoxa no trato com os assuntos da casa. É o que é: agente da profanação dos hábitos, e se ressente de não ter podido aproveitar mais a vida. Propagandeada em outdoors da cidade, a canção Vó, tô estourado , da banda Forró Movimento, tira proveito dessa situação-limite. Murmurada ...

Ensaios de feitiçaria amorosa

Texto publicado no jornal O Povo de 15/9. Foto: Héctor Abad, jornalista e escritor colombiano. “Minha fórmula é confusa”, admite o narrador. “Constatei que em minha arte poucas regras se confirmam.” A arte de que fala é a da mezinha, da feitiçaria, do encantamento, e o público a que se destina é bastante específico: o feminino. Uma enorme bravata, claro. Anotadas à moda das obras de culinária, as sugestões do Livro de receitas para mulheres tristes guardam tanto de gastronomia quanto de simpatias românticas. E, se calham de interessar também a homens, é apenas porque o escritor e jornalista colombiano Héctor Abad, 54 anos, renova um gênero marginal: o do aconselhamento amoroso. De que modo? Misturando-o a outros temperos literários, como o romance epistolar, a crítica de costumes um tipo de autoajuda que se desmascara sucessivamente. Afinal, cada pequena poção consagra-se como correspondência íntima. O tom presumido é de quem elege aquela honestidade só franqueada aos amigos. Feita...

Vida em comum

Se você achar uma pessoa que consegue suportar (o que já é grande coisa), se esse alguém também conseguir suportar você (e tanta coincidência já chega a ser suspeita), e se em certos momentos você não só o suporta como queria tê-lo mais perto ainda, e por acaso sente sua falta quando ele demora, e ao vê-lo recupera sua alegria, então não tenha medo de se submeter a essa desolação da proximidade que é a vida em comum: é bem possível que você resista a ela. Héctor Abad em Livro de receitas para mulheres tristes (página 127).

Modos de ser

As perguntas que sempre fazem, as respostas que nunca oferece. Mais um verbete para o catálogo que agrupa os “Fantásticos Modos de Ser”: reticente, que é o mesmo de lacunar. Lacunar não tem relação com lacustre, que vem de lago, ao menos foi assim que lhe ensinaram na escola. Lacunar também difere de lunar. Tampouco o vocábulo pode ser tomado como a junção arbitrária de lacustre e lunar - algo como a superfície fria e límpida de um lago na lua. Não é forçando a justaposição, e mesmo a aglutinação, que nascerá uma plataforma de significado nova. É preciso alguma espera. Ao contrário do disparate (jogo adolescente de perguntas e respostas geralmente inscritas em caderno pautado), cujo propósito é interrogar e descobrir, o modo de ser reticente empreende uma busca ordinária e infrutífera. Diz: propósito, mas segue, a rigor, despropositada. Se escreve “trabalho”, conserta. Se escorrega peito adentro, chafurda sentimentos. Por despropositada não entendam sem propósito, mas ...