“Minha fórmula é confusa”, admite o narrador. “Constatei que em minha arte poucas regras se confirmam.” A arte de que fala é a da mezinha, da feitiçaria, do encantamento, e o público a que se destina é bastante específico: o feminino. Uma enorme bravata, claro. Anotadas à moda das obras de culinária, as sugestões do Livro de receitas para mulheres tristes guardam tanto de gastronomia quanto de simpatias românticas. E, se calham de interessar também a homens, é apenas porque o escritor e jornalista colombiano Héctor Abad, 54 anos, renova um gênero marginal: o do aconselhamento amoroso.
De que modo? Misturando-o a outros temperos literários, como o romance epistolar, a crítica de costumes um tipo de autoajuda que se desmascara sucessivamente. Afinal, cada pequena poção consagra-se como correspondência íntima. O tom presumido é de quem elege aquela honestidade só franqueada aos amigos. Feitas para consolar uma dor sem nome, as receitas de Abad encorajam o mergulho na dubiedade. Demonstram que os fastios e humores do corpo não possuem remédio seguro.
Beberagens terão resultado falho. Raízes colhidas a velhas sábias resultarão, quando muito, em ligeiro descanso. Todavia, diz o narrador, é possível recorrer a “frutos e verduras, ervas e raízes, músculos e vísceras” quando nada mais apontar para solução. O que assinala de saída é regra para todo o livro: “Leia este falacioso ensaio de feitiçaria: o encantamento, se valer, nada mais é que seu som – o que cura é o ar que as palavras emanam”.
Partindo de temas diversos - apatia sexual, menstruação, desconforto estomacal, traição e mau hálito -, os conselhos buscam tirar algum proveito, literário e gustativo, de uma premissa incontornável: a procura desesperada por felicidade. Novamente, o homem por trás dos conselhos esquiva-se: “Ninguém tem a receita da felicidade. Na hora infeliz, de nada valerão os mais elaborados cozidos do contentamento”. Adiante, porém, pergunta a uma leitora hipotética: “Como acreditar em quem diz amar você? Caldo de tornassol”.
Sobre a culpa, o que se lê tem certa fragrância de heresia: “Há mulheres que, num genuflexório e através de sombria treliça, se confessam. Outras, talvez mais sábias, vão ao banheiro e se lavam. Ambas ficam limpas e livres da culpa”.
Sobre o mau hálito, deixa claro que “o sorvete de pétalas de rosas, apesar do que dizem insignes tratadistas, não é bom. Só uma coisa salva desse mal que vira um fiel inquilino dentro do corpo: escova, fio dental, bochecho, uma higiene exaustiva da boca, essa espécie de víscera que a natureza pôs tão fora da gente”.
Composto de textos breves e de outros brevíssimos, Livro de receitas para mulheres tristes carreia uma heterogênea sorte de assuntos, atribuindo a cada um nova camada de sentido. Para o autor, o que há são unicamente “atalhos de consolação”. Para o leitor, restam o riso e a delícia ante a fantasia que as palavras emanam.
TRECHO
Essa tendência a trair, a mentir e a ser totalmente franca. A se esconder ou a se mostrar demais. Esse cuidado em tomar tanto cuidado, para no fim contar sua história, sua verdade nua e crua, a um desconhecido. Essa vontade de fugir, de sair correndo quando alguém dá sinais de que começa a conhecê-la. Essa vertigem de ficar. Essa indomável sede de alguém e de não estar com ninguém. Essa vontade de mudar sem abrir mão de nada. Essa fome do impossível. Como pensar nessa confusão contraditória? É verdade e é mentira, está certo e está errado, e não há saída.
Nada a fazer. Tome um copo d’água.
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