É inexpressiva a fatia da população cearense
que percebeu, até agora, que o refrão “Vó, tô estourado e meu avô é o culpado” evidencia
uma troca inusual de papéis familiares. Por trás da métrica livre dos versos do
forró, há a sugestão de mudança nos costumes: sai a figura da avó permissiva,
cuja proposta pedagógica, fundada no anarquismo e no princípio do laissez
faire, laissez passer, tem o condão de mimar em excesso os (as) filhos
(as) dos filhos (as), estragando-os (as).
No lugar, entra o avô galhardo, desmantelado,
raparigueiro, irrecuperável biriteiro. Esse avô hipotético de que fala a música
não teve grande problema em se desincumbir da responsabilidade de ser o mantenedor
de certa reserva ortodoxa no trato com os assuntos da casa. É o que é: agente
da profanação dos hábitos, e se ressente de não ter podido aproveitar mais a
vida.
Propagandeada em outdoors da cidade, a
canção Vó, tô estourado, da banda Forró Movimento, tira proveito
dessa situação-limite. Murmurada baixinho nos ônibus lotados, cantada a plenos
pulmões em postos de combustíveis por garotões vestindo Hollister, entoada nos
karaokês de condomínios da nova classe média, o hit polemiza ao perguntar
subliminarmente: até que ponto o que somos é resultado dos erros cometidos por
gerações que nos precederam? O farto sortimento de pecadilhos que fazemos
desfilar dia após dia tem nascente décadas atrás, remontando aos anos de
mocidade do vovô e da vovó? E o que o vovô e a vovó teriam a dizer?
Recorro à experiência pessoal. Não conheci
meus avôs. Sequer tenho noção de como eram fisicamente. Não há fotos, e as
descrições feitas pela avó materna, a dona Maria, 94 anos, inscrevem-se no
campo do onírico. Resumindo: os homens que se casaram com as mães dos meus pais
são fumaça perdida no tempo. Não têm rosto. Mal lhes sei o nome.
Deles, porém, guardo o seguinte: meu avô
paterno foi jogador de baralho. Era profissional, e viajava a trabalho. Correu
cidades do interior do Ceará à procura do carteado. Se a sorte virasse, apanhava
do bolso o baralho marcado. Apostava sempre. Morreu como não se morre há muito
tempo: defendendo a honra. Era calado, pacato, refém da coragem explosiva que
anima os tímidos. Gostava de peixes.
Do avô materno, recordo a folclórica
ojeriza por gatos. Detestava o animal. Por que tanto ódio? Minha avó não
responde, mas, entre gargalhadas, conta que, durante jantar na casa dos
padrinhos, um bichano gordo e preguiçoso alçou-se à mesa. De mansinho, ronronou
e foi se encostando. Estimado, sentia-se à vontade para comer ao nível das
gentes, incluindo convidados. “Teu avô deu um murro no gato. Morreu ali mesmo.”
Vovô ficaria conhecido na vizinhança como o homem que odiava gatos, mas também
como mascate, viajante, intranquilo e namorador.
Voltando ao forró. Diz a música: “Desde
pequeno, ouvia ela (a avó) falar: ‘Meu filho, estude para um dia se formar’”. O
contraponto sedutor do avô não demoraria: “Escute o conselho que agora vou lhe
dar: não tem coisa no mundo melhor do que farrear”. Dali em diante, é o que o
neto fará (“Fim de semana/ fazer o quê?/ beber, curtir, farrear”). Guerra
vencida, o avô comemora: mergulho bem-sucedido na danação.
Fiz a mim mesmo a pergunta: o que é culpa
das vovós e dos vovôs? Procurei as marcas. Encontrei algumas. Adoro gatos
(herança com sinal invertido) e carteado. Perdia aulas para jogar baralho com
meu tio e meu irmão. Tenho um aquário. Criava dez peixes, mas todos morreram. Calado
e pacato. Não tenho vocação para mascate. Nas viagens, porém, o apelo é o de
não voltar.
Crôncia publicada no jornal O POVO em 20/9/2012.
Crôncia publicada no jornal O POVO em 20/9/2012.