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Odia odiado

Misologia : substantivo feminino. Quer dizer ódio ao raciocínio, à lógica. Horror às ciências. Não gosto particularmente dessa palavra, mas achei que seria interessante começar com ela. Rociar : o mesmo que orvalhar, cobrir de umidade, borrifar. Essa, sim. Rociar é uma pérola. Talvez porque não combine exatamente com orvalho. Lembra qualquer outra coisa, menos tornar algo úmido. Algumas palavras são assim, tem esse poder. Não lembro outra agora. Bilirrubina : pigmento vermelho, presente na bílis e nas fezes, de estrutura complicada. Final escatológico. Antecipa a leitura de Jonas, o copromanta. Gosto de dicionários tanto quanto de romances e novelas. Sem saber, eles nos contam grandes e pequenas histórias. “Rociar” me diz muita coisa, “bilirrubina” também. Mas isso é bobagem. Antes de morrer, escrevo um dicionário. Quem disse isso? Guimarães Rosa. Ele tinha amor aos dicionários. Morreu antes. Mário Quintana garantiu que, acaso tivesse de se mudar de mala e cuia para aquela ilha deserta...

Do tempo, do it

Dedos. Dados. Antes da palavra, era o sofá de costas na sala de espera. Antes da palavra, era o quintal cheio de bonecos e lagartas, a folha em branco, a folha riscada, a folha desfolhando-se enquanto na casa ao lado o casal engalfinhava-se. Ela perdeu o sutiã, ele a cabeça. Empurra pra cá, empurra pra lá. No canto, olhava. Antes da palavra, havia as brigas conjugais e os peitos à mostra, as pernas magras e a menina atrás das cortinas, as tias nos banheiros de casa, as meninas da escola, os meninos da escola, as professoras todas apenas uma não era como as professoras todas. Dados, dedos, doze parafusos, dedos, dados, doze parafusos. Conto até trinta e me escondo, vocês correm, não me vêem nem eu os vejo, aonde fomos todos? Conto até doze, conto nos dedos, nos dados. Antes e depois da palavra, o que havia? Antes e depois não cabem aqui, em lugar nenhum, mesmo espremidos e cheios de cuidados, por favor, afastem-se para que eles passem, por favor, dêem licença, por favor, sejam educados ...

C de Coisas com as quais me viro

Gosto de matar, matar leões, leopardos. Tapurus do mato. Gosto de matar loucos engaiolados, quem não gosta? Gosto: antecipar desgraças, afugentá-las, desvencilhar-me dos espinhos, que procurem — Outro destinatário. — Sempre quis aprender a fumar. — Eu também. Gosto: gosto. Encontrar moedas, secar feridas, andar recostado aos muros. No meu sítio crio criaturas crentes, crias do credo nosso. No crepúsculo, crescem e cravam caninos nas crostas do crânio carcomido de quem as criou. Cruzes... O poeta merece ser cremado. Antes, crivado de balas. Gosto: ver filme ruim, filme de vacas, vacas, vacas. Ver filmes ruim desabafa?

Outra coisa

Às vezes tenho engulhos. Sem motivo aparente, eles vêm, instalam-se por uma, duas horas, incomodam e depois se vão, inexplicáveis. Fico um pouco assustado, engulhos sem razão, sem necessidade, apenas por troça, brincadeira, engulhos zombeteiros? Quem sabe. Não entendo nada de engulhos, nada mesmo. Mas engulhos são coisa de mulher grávida, penso. E não sou mulher nem estou grávido — bastaria ter dito apenas “Não sou mulher”, já que homens não podem mesmo engravidar. Tenho engulhos antes de dormir, depois de ter lido algumas páginas de livros e jornais e também após ter visto comerciais na televisão. Ao preencher formulários e apanhar filas, subir e descer escadas, abrir presentes e descascar frutas. Topar com velhos na rua, pontas de cigarro e latas de leite vazias. Vêm quase sempre nessas e noutras circunstâncias, mas também quando não espero sentir o que quer que seja, quando estou sentado no banco da praça ou no trabalho, digitando palavras no computador. Eles vêm. Engulhos são miste...

Novas novidades

O blog mudou. Conciso, compacto, comprimido: cabe no bolso da calça ou na palma da mão. Mas essa não foi a razão principal. A razão principal permanece totalmente ignorada. Ignorar a razão principal das coisas tem sido uma ocupação das mais louváveis e em grande medida inexplicável. O blog mudou porque tinha de mudar? Talvez. Mudou para ficar igual? Quem sabe... O certo é que mudou. Mais textos, menos doutrina. Comentários curtos, dolorosos. Fisgados do instante. Menos vida, mais invenção — e vice-versa. Nada pessoal, apenas ficcional.

Soldados

Que fazer agora? Deixa os corpos aí. Depois a gente resolve. Agora, quero beber alguma coisa. Bebeu alguma coisa. Agora, comer alguma coisa, alguém. Comeu. Agora, quero dormir. Não perturbem. Sem sobressaltos, dormiu a tarde inteira e o começo da noite. Agora, pegamos esses corpos e levamos até o outro lado da rua. Lá, atrás da delegacia, tem uma ruazinha sem movimento, ninguém vai lá desde que os assaltos aumentaram na área. A população suspeita dos próprios polícias. Podemos deixar os pacotes num dos monturos. Depois, voltamos para cá. Ninguém vai suspeitar de nada. No outro dia, nada de suspeitas. Os corpos tinham desaparecidos, os vestígios apagados. Um dos policiais achou que fosse coisa deles e tratou de enterrar um pouco mais longe os três meninos bandidos. Durante breve interrogatório, as respostas de sempre. Eles disseram “não” quando deviam ter dito “sim” e “sim” quando deviam ter dito “não”. Assim escaparam das acusações. Viajaram para fora do Estado. Um deles ficou. Não que...

Bolhas

Ele vivia dentro de uma. Há quanto tempo? Ninguém sabia. Dentro da bolha. Não uma de sangue, como as que estouram no meio da rua e matam subitamente, sem dar tempo para últimos pedidos nem passadas rápidas na casa do namorado. Não há hipótese de despedida quando a bolha enfeza-se, ela arremete e pronto, está decidido: o mundo girará. A bolha move-se. Pode parecer que não, mas ela desloca-se diariamente em todas as direções, vai à esquerda e à direita, para frente e para trás. Não tem rodinhas, sua estrutura de bolha não comporta periféricos que lhe possam amenizar a existência. Mesmo assim, a bolha é suave. Rua abaixo ou acima, ela desliza. Sem ser vista, passa debaixo de janelas e sob marquises de lojas, lanchonetes e sapatarias. NOS vê, inquieta-se. Vê-NOS. Em seguida dobra a esquina, leve. O que seria das bolhas sem a nossa desatenção? Nada. Talvez estourassem mais facilmente. Talvez fossem mais simples. Talvez tivessem rodinhas. Dentro, ocas. Ficamos surpresos ao descobrirmos bolha...