Pouco mais de dez dias de férias. Distante das redes, sem contato com o noticiário, escuto sons de panela no prédio ao lado. Pauso a série, salto do colchão estirado na sala e corro à varanda. Não preciso estar a par do que acontece para saber que se trata de um protesto contra o presidente, aquele cujo nome já escrevi inúmeras vezes em páginas de jornal e nas redes sociais, um nome que me cansa, exaure.
Uma família ocupa a varanda. De longe, adivinho o cômodo sob a luz amarela, duas crianças e dois adultos, o fim da noite. São como uma banda desafinada que ensaia para uma apresentação na gincana da escola.
No dia anterior, havia visto rapidamente algo na TV sobre Manaus. Uma tragédia da qual eu passara ao largo até então. A culpa logo vem: enquanto gente morre naquele estado onde um dia um ramo extraviado da família da minha mãe escolheu como lugar para viver, eu deliberadamente tento me desligar do fato de que afundamos cada dia um pouco mais.
Tenho me esquivado de tudo desde o fim do ano passado, quando emendei recesso com o mês de descanso. Mas é impossível qualquer tentativa de escapada. Não se foge ao abismo, que sempre nos encontra, seja em que lugar estejamos, no trabalho ou em casa.
Permaneço na varanda às escuras ainda por alguns segundos, cogito revirar panelas na cozinha e colher e eu mesmo berrar, contudo a gratuidade do gesto me afasta. Desanimo. É preciso mais que isso, mas o quê? Como extrair um presidente do poder, como puni-lo exemplarmente, de modo que nenhum outro se atreva a tamanha maldade, como segregá-lo e impedi-lo de fazer o que faz e dizer o que diz sem torná-lo ainda mais popular?
Uso palavras gastas para me referir a esse lugar sem nome porque, no fundo, sei que, nos dois últimos anos, ceguei todo o instrumento de corte, bati contra a pedra e lasquei as mãos. Um dicionário inteiro é insuficiente para cobrir a existência dele.
Minha filha de seis anos tem uma resposta: um dia, ela conta, estudaria muito e seria ela mesma a presidente, afastando o atual. Foi numa quinta-feira, hora do almoço. Rimos juntos, menos do conteúdo do que da forma, que carregava uma raiva infantil, um jeito engraçado de crispar as mãos, como quando se perde um brinquedo ou machuca o joelho. O máximo de contrariedade numa mínima contração do corpo.
O barulho na varanda cessa, a família apaga a luz. Tudo volta ao silêncio. Deito novamente no colchão. Faz calor, então trago o ventilador para a sala, ligo no 3 e despauso a série. Uma produção irlandesa que narra a história de uma série de assassinatos de crianças em Dublin. Uma tragédia.
Começo a escrever no dia seguinte sem saber ao certo o que pretendo, mas ciente de que nada do que diga agora servirá de consolo para ninguém, para mim ou qualquer pessoa. É a inutilidade do que faço que me leva adiante.
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