Normalmente uma crônica nasce de
duas maneiras, nenhuma delas saudável: a estrita falta de tempo ou a
inesgotável capacidade de adiar. Ou ambas, a depender do cenário. Agora, por
exemplo. Tenho apenas meia hora pra começar a escrever seja o que for.
Comecei
um parágrafo sobre o discurso do presidente na ONU, mas desisti ante as
dificuldades que teria pela frente, limitações físicas que têm relação com a
falta de sono e a preguiça, mas também certa impermeabilidade momentânea a tudo
que cause enfado ou simples desgaste de material.
Desisti, bom que se diga, e
passei a outra ideia, largando pra trás a crônica já iniciada para aproveitar
um retalho de outro texto, ele também abandonado em outro instante, de modo que
retomei essa ideia anterior enquanto a presente se mantinha em suspenso.
Uma crônica também nasce à
maneira de uma costura, pela mistura das palavras que temos à disposição
naquele momento, pela combinação de frases antigas e atuais, pela reinvenção do
antigo, acessando os guardados e os expondo à luz, pelo envelhecimento precoce do novo, que é também uma qualidade.
Uma crônica nasce porque temos
um corpo e nesse corpo há tantos humores. Nasce porque temos sede ou chulé, ou
porque falamos diferente, nasce porque tropeçamos na rua, porque temos inveja e gula, porque arrotamos e gozamos.
Uma crônica nasce porque nos
falta assunto e de repente o ato de escrever se desmonumentaliza, a vida é uma
miniatura, como uma casa de Legos, e nela vemos todas as peças que formam o
mosaico de pequenos desastres que cercam cada segundo de cotidiano.
A crônica vem ao mundo sem
querer, porque a chamaram e ninguém atendeu, porque ninguém a chamou mas ela
está aqui. Nasce de acasos, encontrôes e conversas que se fiam noutras e
noutras, até darmos conta de que temos tanto em comum, mas também muito de
distante.
Nasce de estarmos cansados, e
então a crônica é apenas um descanso, um modo de enfileirar e justapor as pernas e braços dos vocábulos, arrancando alguma graça, se não for pedir muito, talvez uns segundinhos
de amor ou carinho, porque aí já exagero.
Disse que uma crônica nasce de
duas maneiras, falta de tempo e tempo alargado, empurrado com a barriga, mas é
justo o contrário, talvez. É quando estamos distraídos, e o tempo não é mais que um conceito vago perdido na
aula de Física do 1º ano ginasial, que a crônica poreja.
Sim, porque dizer que nasce é de uma grandiloquência e solenidade impróprias à crônica.
Vejam, nasceu a crônica! No máximo, resta a crônica, como o rebotalho, aquilo
que esquecemos mas permanece, uma nódoa na camisa, a marca do sutiã ou da cueca que se desfaz aos poucos, o rasgado de uma calça, um pé do calçado que não encontramos. Nasce da falta de jeito, como
detrito ou sobejo, um restinho que guardamos pra depois.
A crônica é esse derradeiro bocado de comida que levamos até a boca quando ainda temos fome mas não sabemos de quê, e reparem como é bom, como enternece e satisfaz.
A crônica é esse derradeiro bocado de comida que levamos até a boca quando ainda temos fome mas não sabemos de quê, e reparem como é bom, como enternece e satisfaz.
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