A filha dorme no colchão na sala. Sinto que
está em paz quando, de repente, vira-se e sorri sem abrir os olhos. Às vezes faz isso quando
chego do trabalho tarde da noite e lhe digo baixinho no ouvido: eu te amo.
É noite de sexta-feira, quase sábado, as
fotos e atualizações dos amigos dão conta de uma vida que acontece fora daqui,
fora do mundo, noutro tempo que não este, mesas repletas, comida e bebida. Pela
primeira vez não quero nada. Estou plenamente aqui.
Termino uma leitura, pauso antes de começar
outra. Penso no dia, um acumulado de horas que resultaram em três ou quatro
páginas escritas sobre uma escritora de que gosto muito. Passaria todo o tempo
discutindo sua obra, suas personagens, suas criações. Detalhes, pormenores. Mas
canso.
Repasso em vista os livros sobre a mesa, as
rotas, as dores e também as alegrias, mesmo as refeições
começo a inspecionar mentalmente. Me esforço para lembrar do almoço de ontem. Então tenho esse ímpeto que nunca tive: anotar cada
coisa. Chamá-las pelo nome que tem. Se se chamam João, que atendam pelo nome de
João. Se são Teresa, que passem a ser chamadas de Teresa. A necessidade de dizer o preciso, de clarear e abrir caminhos.
Teresa era o nome de minha avó, e isto é sem dúvida uma digressão. Minha avó morreu de câncer aos sessenta e poucos anos. Foi meu segundo encontro com a morte. O primeiro foi uma criança que havia se afogado ao cair numa cacimba. Seu caixão era minúsculo. Lembro disso, o diminuto do caixão, quase como uma caixa de bonecas.
Minha avó era gorda, farta, morena, forte. A doença a comeu em poucos meses. Uma vez, perto de ir, pediu para ver-me. Eu não queria, tinha medo, mas a avó insistia. Me postei em frente a sua cama. Estava magra, ossos perfurando a carne, olhos afundados no rosto. Corri do quarto.
Levei essa culpa por muito tempo ainda. Tinha dado as costas a minha avó prestes a morrer. Tivera medo e correra. Era injustificável. Hoje me perdoo.
Teresa era mãe do meu pai, a quem nunca chamei de papai, e talvez esteja mais uma vez escapando do assunto, mas de qual assunto? Não sei. Disse papai apenas uma vez na vida, e ainda para terceiros, por uma razão especial: queria simular mais carinho e um tipo de vínculo bonito que experimentamos às vezes.
Minha avó era gorda, farta, morena, forte. A doença a comeu em poucos meses. Uma vez, perto de ir, pediu para ver-me. Eu não queria, tinha medo, mas a avó insistia. Me postei em frente a sua cama. Estava magra, ossos perfurando a carne, olhos afundados no rosto. Corri do quarto.
Levei essa culpa por muito tempo ainda. Tinha dado as costas a minha avó prestes a morrer. Tivera medo e correra. Era injustificável. Hoje me perdoo.
Teresa era mãe do meu pai, a quem nunca chamei de papai, e talvez esteja mais uma vez escapando do assunto, mas de qual assunto? Não sei. Disse papai apenas uma vez na vida, e ainda para terceiros, por uma razão especial: queria simular mais carinho e um tipo de vínculo bonito que experimentamos às vezes.
No fundo, porém, sempre achei papai e mamãe palavras carregadas de
muito afeto, mas também muito cafonas e respeitosas, quase reverenciais. Em casa
nunca aprendemos a reverenciar pai e mãe. Nunca me senti à vontade usando
nenhuma delas. Eram nossos pais, apenas.
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