Parar de fumar é como abrir a geladeira e
dar de cara com uma bandeja cheia de sobremesa de chocolate e
mentalmente imaginar que tudo aquilo não traz felicidade, mas o seu contrário,
a infelicidade, e que cada molécula de gordura presente naquela embalagem
marrom com líquido cremoso é um atentado moral a todas as pessoas que
agora mesmo sofrem de diabetes, incluindo minha mãe, claro, e meu tio também,
ambos diabéticos, todavia não fumantes.
De maneira que não podem entender o tamanho da euforia/ansiedade cada vez que olho pra janela da sala e projeto um "eu lírico" fumante escorado no parapeito. De cigarro em punho, o holograma que sou eu vê curioso a vida passar lá em
baixo enquanto absorve com tranquilidade as cinco milhões de toxinas que, ao
cabo de uma jornada existencial dedicada ao tabaco, nos matam de uma hora pra outra.
Então é nesse instante que a projeção de mim mesmo fumando contente um cigarro fictício na janela de casa se
desfaz como a própria fumaça espiralada após circular brevemente pelo sistema respiratório. A felicidade auferida no gesto provisório assume aí contornos relativos. Bom, penso eu, isso vai logo passar, dentro de alguns
meses nem vou lembrar que o cigarro existe, será uma vida bacana, saudável, assim espero, e em seguida me encho
de dúvidas quanto à nossa capacidade de gerir desejos e administrar lacerações em áreas sensíveis do corpo, dores que se aninham nas
profundezas de alguma pasta arquivada no HD mais secreto da alma.
E no entanto vai embora, ligeiro como chegou, essa sensação de impotência diante da falta de governabilidade sobre a própria carne. Retorna o espírito
colonizador, aquele dos primeiros capitalistas, por meio do qual aprendemos a
dominar não somente desejos, mas gestos inoportunos, afastando, desse modo,
fantasmagorias como a que insiste em aparecer na janela erguendo um cigarrinho
à altura do rosto iluminado agora de fagulhas e pequenas bolhas salpicadas de cores
que ninguém conhece.
Parar
de fumar é igualmente parar de exercer um tipo de descomando de si, é eliminar do dia a dia a inconsequência, o matar-se gradualmente, a infecção progressiva, o afundar-se naquilo que não tem retorno, esquecer o que não traz nada de bom embora proporcione imenso prazer. É também, não resta dúvida, afastar uma dimensão erótica do cotidiano, considerando que alguns objetos erotizam o ambiente/pessoas e outros não.
Ou, por
outra, parar de fumar é passar a exercer uma inflexão inédita, forçosa, regulamentar, é isso e
não aquilo, diz uma voz interior, voz mandante. Então, se se quer de fato seguir
em frente com boa saúde, só nos resta acatar essa aporrinhação e dar um
abraço amistoso no que surge adiante, não sem antes procurar um substituto à altura para a exata ideia de
felicidade que o cigarro, objeto cheio de plenitude vazia, alimentava, mas
qual, qual, qual, eis a grande pergunta que nenhum ex-fumante ou fumante gosta de fazer.