E se, de repente, à falta do que dizer, o
homem do 302 resolvesse narrar o que faz a vizinhança? E o que faz a
vizinhança?
Avizinha-se cada dia mais um pouco, adiando
a invasão, afastando a fronteira, estabelecendo pequenas coalizões de intrigas&amor.
O vizinho dá um grito, por exemplo, é uma
ação que pode ser atribuída ao corpo sem forma da vizinhança. E assim também a filha
esperneia no corredor, as roupas secam na laje, a senhoria afixou um novo
bilhete no qual pede gentil mas firmemente que, por favor, informem quando e como
os técnicos das operadoras de telefonia e internet farão visitas e se essas
visitas devem se estender por mais de uma hora, razão pela qual uma segunda
pessoa seria necessária para acompanhar os passos, as revolutas manobras nas
fiações elétricas e, por que não, as conexões clandestinas e fios soltos que os
estrangeiros deixam nas terras nativas que encontram, barbarizando uma vida
pacata, ou seja, a nossa, minha de recém-chegado e deles de muito tempo.
Olhando o bilhete digitado integralmente em
CAPS LOCK pela senhoria, logo entendi por que o contrato mais curto de um ano foi
a melhor opção. Entendi também outra coisa, uma coisa obscena que não posso
dizer senão por meio de um avançado conjunto de frases criptografadas, de modo
que prefiro não o fazer agora.
O último feliz absurdo da vizinhança
foi realizar UM BINGO na madrugada de sábado pra domingo, para tanto interrompendo
o fluxo da rua perpendicular à nossa e nela instalando uma espécie de TENDA sob a
qual as mais diversas pessoas da via, entre elas moradores da minha rua, se abrigaram da CHUVA quando a CHUVA de fato se abateu sobre a
cabeça deles e também na (termo elíptico) do cantor, pois, sem sombra de dúvida, é o que ele fazia
antes da realização do BINGO em si, cantava um forró bem acelerado que não mudava
jamais de cadência e no qual as letras eram simplesmente interpoladas, de
maneira a causar um efeito contagiante de
NON STOP NON STOP e por aí vai.
E a música não parava
jamais, exceto, como disse, quando passou a chover e aí então todos se viram
obrigados a encontrar outra maneira de fazer as mesmas coisas que vinham
fazendo mas em outro lugar.
Nem todo mundo obteve êxito, evidente, e
alguns até foram pra casa, cansados depois de uma divertida noite em comunhão
com a circunvizinhança.
O BINGO, todavia, deu-se altas horas da
madrugada, exatamente quando ninguém mais acreditava – eu inclusive – que fosse
ocorrer e todos olhavam um pouco abobalhados para as cartelas molhadas sem um
único sinal de que por ali haviam passado as pedras numeradas da sorte.
Realizado o certame de cunho popular-folclórico, também essa porção incrédula de
gente pôs-se a caminhar até suas casas, descobrindo-se, novamente e pela
milésima vez em suas existências, que eram vizinhos e, como tais, talvez fosse
conveniente dar boa noite e esperar que no dia seguinte as coisas retomassem o ritmo
e sabor de sempre, amém.