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O contrário do mergulho é o vento

É uma história simples a que desejava contar. Imaginem um garoto como o que acabo de desenhar ficcionalmente. Alguns dias antes de completar 14 anos, contrariando a tradição familiar, o menino decide não saltar mais.

Na verdade, é menos uma escolha que uma desistência.

Rapazes da mesma idade e até mais novos seguem pulando. É o que sempre fizeram. Tomam distância, respiram fundo, sincronizam mentalmente a corrida, a ordem de cada perna, a entrada na água, o tempo de imersão, a escalada de volta à superfície da ponte velha.

A corrida é disparada. A perna direita alcança a primeira coluna. Imaginem que, ao menor erro, despencam de cabeça e que, logo abaixo, há corais pontiagudos e estruturas de ferro da velha construção.

Sem pausa, emenda-se o segundo pulo, que toca de leve outra coluna, e, finalmente, o terceiro. É o trampolim para o mergulho nas águas encrespadas do mar da cidade.

Os turistas aplaudem. Novos saltadores estão a postos.

Entre corrida e mergulho, toda a manobra não leva mais que cinco segundos, e não é tão diferente do salto à distância: dois pulinhos antes do pulo maior, que deve cobrir a maior extensão possível. Um, dois, três e pulo, um, dois, três e pulo... Vale para a areia, vale para o mar.

A história que deseja contar não explica por que o garoto falha. Sequer cogita hipóteses mínimas, um mecanismo psicológico não é acionado, uma "luz" não se acende, uma "peça" já desgastada não responde ao comando do corpo?

Não haverá respostas. A história contenta-se em narrar. O menino não saltará e pronto.

É impossível, conclui, determinar o motivo.

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