A maior festa da capital cearense depois do réveillon e do encontro das organizadas Cearamor e TUF no terminal da Parangaba está ameaçada. Responsável por arrebatar mais gente a cada ano, sucesso apenas comparável ao do Galo da Madrugada (Recife) e do Bola Preta (Rio), o Pré-Carnaval de Fortaleza progressivamente se converteu em palco de um grande espetáculo contemporâneo: o entrechoque de culturas antípodas.
De um lado do octógono civil, a classe média illustrée reclama direitos inalienáveis da pessoa humana foliã: a boa música ouvida por 3,6% da alencarinidade, a long neck geladinha e a imprescindível salvaguarda para, munida de smartphone, registrar nas redes sociais toda sua alegria e espontaneidade.
No extremo dessa arena de gladiadores modernos, comungando valores e assumindo identidades outras, respaldada pelo bom desempenho da economia brasileira, temos uma ala cuja ascensão lhe permitiu, além da compra de televisores LCD, equipar o próprio carro com potentes caixas de som. É desse maquinário acústico que explode a mais diversa sonoridade colhida no espectro de FM pouco frequentado pela gangue rival.
O corolário da guerra momina não poderia ser outro: sem entendimento entre as partes interessadas (“apocalípticos, suor & cerveja” e “integrados só de sacanagem”), dá-se a cizânia, a que se seguem conflitos, tumultos, arrastões e movimentada troca de injúrias na internet.
Alencarino vai às vias de fato para mostrar quem manda
Outro dia um boato assustou moradores do condado do Benfica. Um membro de bloco carnavalesco com bastante penetração na população essencialmente artística (PEA) de Fortaleza se indispusera com um dedicado amante de paredão de som. Ora, o paredão é pivô de toda a confusão no Pré-Carnaval. Antes da chegada da polícia, os dois meteram-se numa altercação verbal que envolvia temas como genitália, novas tecnologias e formação escolar. O pedacinho de diálogo abaixo foi publicado no Twitter há dois dias:
Abaixa esse som, ‘piroquinha’!, teria pedido o folião bacana, ecoando famoso slogan da internet. Estava certo de que a solicitação, atirada sem muita eloquência, surtiria efeito imediato.
Igualmente furibunda, a réplica não se fez demorar: Pega 1) esse sambinha metido, 2) polvilha carinhosamente com areia e caco de telha e 3) depois enfia todinho no carlito.
De fato, é uma pena que, até o presente momento, ninguém do prestigiado Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Outras Querelas sem Importância (campus da Uece) tenha intercedido no debate, arrolando argumentos que possam balizar envio e recebimento de injúrias entre as duas facções pré-carnavalescas.
Enquanto isso, é nas ruas planejadas por Silva Paulet e Adolfo Herbster que os habitantes da quinta maior cidade do Brasil põem em xeque o pressuposto basilar estipulado pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini. A saber: a hibridação é resultado de harmônico entrecruzamento de ethos antípodas, e não o contrário, a beligerância declarada entre microcosmos que demarcam comunidades não-amigas.
Assim como a festa, a polêmica não tem hora para acabar, e a tendência é que o Pré-Carnaval se torne mesmo arena da expressão de múltiplas experiências e da peculiar refrega entre paredões e ukeleles.
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