
Difícil mesmo foi conciliar aquele pensamento ainda no café, o pensamento que era o sonho. Zumbis, sexo, mais não lembrava, apenas que era acossada numa escadaria por uma mulher que tinha cinco ou seis pernas e que percorria rapidamente as distâncias sem saltar degraus, arrastando-se, e aquilo era a representação de tantos filmes horrendos que já havia assistido antes, sabia disso em fração de segundos, e essa consciência, diria uma superconsciência, era a melhor coisa dos sonhos, então havia um lado ruim, o medo, e um lado bom, o poder de fazer o que quisesse.
Era como a moral da história no final dos desenhos animados dos anos oitenta, quando o Príncipe Adams voltava ao começo do episódio e, a partir de momentos tensos e representativos, explicava alguma doutrina, falava do bem e também sobre como o Esqueleto podia ser um cara com profundas carências afetivas recalcadas naquela relação, e a Montanha da Serpente, um lugar de péssimas energias que certamente merecia uma boa sacudida por algum feng shui man.
Nos sonhos, as pessoas são as pessoas exatas que queremos que sejam, mesmo quando fisicamente são o oposto, e isso é engraçado, isso é o melhor da história para ser francamente coerente com algo que estou pensando agora. Acontece de transar com outro homem ou mulher, como foi o caso dela, pelo menos foi o que me contou, uma mulher?, perguntei fazendo a careta de assustado que faço quando estou de cara no sol bem na parada de ônibus, esperando o ônibus, evidentemente, e ela disse simplesmente foi, sim, espero que isso não se repita, brinquei, claro, ambos rimos um bocado enquanto os alunos se encostavam ali, e tinha aquela menina de tênis e broches insegura que chama atenção, sempre tem essa menina em qualquer escola, em qualquer tempo.
Concordamos que seria melhor fazer sexo urgentemente antes que outra mulher assumisse meu papel naquela história toda que tínhamos há um bom tempo.
Fomos pra casa. Estava escuro, eram sete e meia, as plantas nos jarros pediam água tinha duas semanas, o aquário também sujo, meu Deus, e os peixes naquele estado de penúria que comeriam até croissant com Fanta. Não sei onde todos estavam com a cabeça, mas a vizinha passava ferro nas roupas e o mesmo incenso pra espantar ETs era o cheiro predominante no corredor, e foi nesse instante que tocou uma música, e foi nesse mesmo instante que senti algo inclassificável, não esse sentimento de coisa sentida, uma coisa tipo caramba, isso nunca mais irá se repetir em toda a minha vida, e nem estávamos falando da letra de alguma canção pop, mas era como se fosse, era como se fosse...
Porque ela gosta de homens e nós dois entendemos que essa permissão era apenas uma licença dos sonhos, que podem tudo, sabem, por que os sonhos podem tanto? Reparem que isso não corresponde à realidade dos fatos, nem a realidade dos fatos corresponde a qualquer coisa, porra, que merda quer dizer a realidade dos fatos é algo que me pergunto desde que tinha oito anos e fui surpreendido atrás do sofá com uma menina, ela de calcinha abaixada, eu de cueca enrolada no cós, ambos sem saber que o fazíamos ali, sequer sabíamos que aquilo era a realidade dos fatos, e a realidade dos fatos tampouco sabia que, no fundo, tudo era uma coisa sem pé nem cabeça, e caso se acreditasse nessa viagem do tempo estriado e nos buracos de minhoca que atravessam o espaço e levam a gente de um ponto a outro em microssegundos, bom, aí tudo virava um grande SCI-FI.
E foi daí que sobreveio o espanto no café da manhã, logo quando acordamos fomos direto atacar o fogão, ela com panela e pano, eu com a frigideira e os ovos e manteiga, então o café estaria pronto em cinco minutos, o tempo da fervura da água. Foi nesse estágio das coisas, em termos genéricos uma coisa que estávamos habituados a fazer, que houve um momento de espanto generalizado, que troço foi esse de madrugada, esse sonho louco em que zumbis se misturaram a sexo com outra mulher e uma aranha feminina me perseguia por escadarias e eu não tinha a menor ideia de quanto aquilo iria durar? Ela não soube responder, eu bem menos.
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