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PERDIDOS - NUNCA ACHADOS


Todos os dias, 120 mil pessoas se perdem no mundo inteiro. Deixam suas casas para nunca mais. Dez por cento desse total vira-se para o cônjuge e diz: Vou até a padaria. Percorre o trajeto de ida, mas não o de volta. Trinta e sete por cento recorre a expediente semelhante: Preciso comprar cigarro. E adeus. Fumam carteiras de Carlton ou Marlboro bem longe da rua onde costumavam – ou não – levar os filhos para brincar.

Treze por cento abandona os seus lares na sexta-feira. Na segunda, ainda não regressaram. Motivo: como os garotos de Caverna do Dragão, esqueceram o caminho de casa. Go home? Só em outra encarnação. Não há portais ou mestres anões capazes de indicar o palmilhado a ser percorrido da boêmia até o quarto – ao lado dos dragões e cavaleiros medievais, os anões também se perderam.

Apenas 5% desse contingente realmente sofre algum tipo de violência. São capturados na porta do condomínio, caem nas mãos de vingadores, justiceiros e, na semana seguinte, têm os seus dedos ou fatias da orelha enviados pelo Correio para os seus familiares. O que, de longe, é algo assustador. Dos 35% restantes, 30 escolhem viajar sem comunicar previamente a família. Escapam da casa na calada da noite. Vestem toucas ninja, calçam sapatos de pano, penduram o cantil no cós da calça. E se danam no mundo. Três meses depois, são vistos na capital da Bulgária em meio a um protesto de jovens ambientalistas.

O que fica – cinco por cento – de fato se perde. Não consegue voltar à própria casa. Tentam, mas já estão muito longe. Pedir informações requer habilidade. E isso lhes falta. Preferem sentar-se num banco de praça de alguma cidadezinha de Minas Gerais e esperar que o tempo melhore.

Mas o tempo não melhora nunca.

SE TIVESSE DE ME PERDER, ESCOLHERIA O SRI LANKA.

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