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ATO institucional Nº 1

Viajei. Fui à serra cobrir-me de ervas aromáticas, dançar a dança do siri e beber bastante vinho. Friorento, pus duas camisas, três pares de meias, duas calças, sendo uma delas de moletom escandinavo, ou seja, aquele que mesmo sob nevascas e chuvas de granizo sequer orvalha.

Mentira, claro.

Mas estava frio. Dormimos no carro, apertados na traseira, cansados depois de tanta folia, entupidos de cerveja e nicotina, sem um tostão no bolso para pagar um quarto decente, com cama e lençóis. Resultado: não conseguia esticar as minhas pernas. Porque éramos três.

Sim, três.

Espremidos na traseira de um Peugeot estacionado ao lado da casa do prefeito recém-eleito, nos fundos do prédio que dá para a praça principal da cidade, que é um ovo. Literalmente. Percorrendo-se uma rua, chega-se rapidamente ao seu início. Como uma cobra que engole o próprio rabo.

Voltando. O lugar também era uma espécie de Rota de Fuga dos Maconheiros de Plantão, que param por ali para acender os seus baseados e dar uma trepadinha com a menina bonita encostados no poste.

Minto: havia mais um deitado nos bancos da frente do carro. No total, quatro pessoas. Passava das três da manhã quando nos enfiamos ali. E desmaiamos.

Quer dizer, teria sido exatamente um desmaio se pudéssemos esticar as pernas e sossegar os corpos. Naquela situação, naquele desconforto, torcidos e retorcidos, no máximo conseguimos dar cochilos e tomar sustos sempre que alguém mais empolgado começava a roncar. Por despeito, porque o homem – e a mulher também – são movidos a ódio e inveja; porque nem mesmo depois de termos feito votos de um ano melhor conseguimos ser pessoas melhores. Com tudo isso, íamos lá e cutucávamos quem conseguia dormir mais de meia hora seguida. Atrapalhávamos o sonho alheio bolinando.

Mesmo assim, foi ótimo. Estaremos lá novamente no fim do ano. Desta vez, pelo menos uma barraca, certo? Ou quem sabe uma casinha. Com um quarto e um banheiro, sim. Não custa sonhar. Mesmo que haja sapos, mesmo que a água da pia esteja marrom de tanto ferrugem desprendido do encanamento.

Go, Morra

E vocês, como se portaram no réveillon? Como gente grande? Ou como pessoas lascivas e luxuriosas? E cheias de desejos que não se concretizam no ano novo? Arrotaram na sala depois de champanhe? Comeram além da conta? Chafurdaram na laje, na cobertura ou na área de serviço? Passaram por todas essas situações e mais algumas?

Foderam como camelos quando encontram uma sombra depois de três meses viajando no deserto? Ou como padres que quebram as promessas de castidade após terem sido varridos de cima a baixo por sussurros demoníacos?

Enquanto isso, na SALA DE JUSTIÇA...

Um dos líderes do Hamas morreu. Após o lançamento de uma pequena bomba – ela pesava uma tonelada -, ele, suas quatro mulheres e seus 12 filhos foram para o espaço. Israel os matou sem dó.

Rayan era terrorista. Merecia a morte que teve. Assim como os líderes do país judaico merecem coisa bem pior. Porque Israel é um país de terroristas. O terror não tem nada a ver com democracia. Os Estados Unidos são uma democracia e, em algumas situações, são terroristas. Até onde sei, Israel também é uma democracia. E pratica o terror.

Matar quatro centenas de pessoas por que o Hamas lançou dois ou três foguetes é como sacar uma pistola na hora do jogo e atirar no juiz porque ele marcou um pênalti que não existia. Ou esfaquear o zagueiro que deu canelada no adversário o jogo inteiro.

Palavra do Senhor.

Das saudades gregorianas

Enfim, janeiro. Há meses esperava por esse mês. Agora que chegou, aguardo junho e julho ansiosamente. Mais ainda agosto. Depois disso, passo a invejar aqueles cujo calendário já marca dezembro.

Vou indo. 2009 já chegou.

Como primeiro ato oficial do ano, eu decreto que haja chuva nos próximos dias. Do contrário, morrerei.

Observação: ainda não entendo por que havia tanta gente vestida com cachecol, gorros, luvas, calças aveludadas, camisa de mangas compridas. O termômetro marcou a noite inteira: 18 graus Celsius.

Vai explicar. Quer dizer, eu mesmo explico: existe toda uma variável física que justifica o uso indiscriminado de peças acentuadamente de frio. Só não me perguntem que variável é essa.

Até de novo e pra valer. Que 2009 comece como começou e termine de algum modo. Porque é sempre bom quando as coisas terminam e recomeçam.

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