Pular para o conteúdo principal

NATAliteratura

Sabem, escrevi isto no CADERNO DE DOMINGO. Por razões óbvias, não saiu completo. Completo na sua incompletude. Faltou espaço. De qualquer forma, leiam o texto do Ignácio de Loyola Brandão, que ficou uma maravilha. E os demais, que ficaram formosos.

Estou a pensar que a intenção foi alcançada. Falar do Natal na literatura. No fim, dêem uma boa lida nas coisas do caderno.

QUEM PAGA O PATO?

HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO

O conto tem menino, brinquedo, velho barbado. Tem Natal, sim. Chama-se O pato do Lilico. Foi escrito por um cearense: Caio Porfírio Carneiro e publicado em Trapiá, livro que reúne outras dez historietas. Resumo: o menino acompanha o pai até Coité, povoado amiudado no interior cearense. Era a cidade grande, a megalópole sertaneja. Lilico queria por tudo no mundo ir até Coité na véspera de Natal, ver a cidade formosa, andar na praça, chafurdar. O pai convidou, e lá se foram os dois: Tropeiro João, vender o amontoado de coco que chacoalhava às costas do jumento. Lilico, fazer graça mesmo.

Na vila, o menino fica encostado num canto enquanto o pai ia ali, cuidar da venda. Não fosse pra longe e espiasse o jumento, que era meio de transporte valioso. Hoje é que anda perdido no mundo, sem rumo, obstruindo as estradas, empatando os carros e as motos que vão e vêm. Se se encontram no caminho, quem perde é o brutinho. Aí Lilico, menino avoado, viu o pato sassaricando perto. Maravilha. Que era aquilo mesmo? Um pato que pulava, um pato de mentira, sim, mas que era ver um pato de verdade. Sim, um lindo patinho que brincava alegre. Em redor do bicho, uma meninada que era só risada. Foi Lilico encostar para ser repelido, quase linchado. Os meninos não queriam “canelau” por perto. Corresse dali.

Foi o que vez. No embalo, topa num homem que, sem mais nem menos, o leva a outro homem. O segundo era mais extravagante ainda que o primeiro. Um tal roupão encarnado, uma barba branca. Um tipo que não se via naquelas bandas. Era estranho. Estranho mas tinha um pato como aquele que saltava feliz na calçada. Sem perguntas, o velho lhe estendeu o brinquedo. Lilico o segurou. Maravilha.

O conto termina com Lilico levando uma surra do pai, o tropeiro João. Porque não acreditaram – ele e a mulher - no menino que contava em casa a história de um tal encarnado barbudo a distribuir patos de plástico às vésperas do Natal. Contasse outra. O coisa ruim tinha roubado o brinquedo de alguma loja, tinha mais era que pagar. Era a moral sertaneja justiçando sem recuo. Essa é a história de Lilico, o menino que foi punido por ter ganho um presente do Papai Noel. Na verdade, por não saber quem era o Papai Noel. Pobre Lilico.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas