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Modos de ser

As perguntas que sempre fazem, as respostas que nunca oferece. Mais um verbete para o catálogo que agrupa os “Fantásticos Modos de Ser”: reticente, que é o mesmo de lacunar. Lacunar não tem relação com lacustre, que vem de lago, ao menos foi assim que lhe ensinaram na escola. Lacunar também difere de lunar. Tampouco o vocábulo pode ser tomado como a junção arbitrária de lacustre e lunar - algo como a superfície fria e límpida de um lago na lua. Não é forçando a justaposição, e mesmo a aglutinação, que nascerá uma plataforma de significado nova. É preciso alguma espera. Ao contrário do disparate (jogo adolescente de perguntas e respostas geralmente inscritas em caderno pautado), cujo propósito é interrogar e descobrir, o modo de ser reticente empreende uma busca ordinária e infrutífera. Diz: propósito, mas segue, a rigor, despropositada. Se escreve “trabalho”, conserta. Se escorrega peito adentro, chafurda sentimentos. Por despropositada não entendam sem propósito, mas ...

A dama do parque

Publicado no jornal O Povo em 23 de agosto de 2012. Não há beleza sem pudor. Nem paixão que se meta no claustro. O caso de Amelinha contraria ambos os axiomas: formosa e interessante. Sem contar que era um prodígio na arte de levar a carne a passeio. Nas primeiras horas do dia, dirigia-se às veredas fecundadas de húmus do parque ecológico da cidade. Era o início da segunda década do século XXI, e a fêmea de 27 anos escandalizava, aos poucos, a população economicamente ativa do Cocó. Antes e depois de Josafá Cristo Azinhas, marido cujo zelo os jornais da época trataram de sublinhar, Amelinha teve “mil e uma acareações sexuais” – grande parte delas sob o testemunho naturalmente pudico de saguis e louva-deus, dois bichinhos graciosos. Não ocultava nada. E embora tenha acolhido no mato surpreendente variedade de machos da região, a rapariga proclamava a toda Fortaleza: jamais Cristo fora enganado. Tinha ciência de tudo. Foi meu único amor, o Cristo, e mais ninguém. Se o cônjuge tolerava o ...

Space dog não sabe trabalhar

Space dog encara o firmamento e crê que, esteja onde estiver, há chances iguais de que a atmosfera seja ao menos semelhante à da Terra, de modo a proporcionar sobrevida. O que procura é dar o passo seguinte, também chamado passo adiante, o movimento que se segue a outro, conforme ensinam os manuais de física. O passo adiante requer menos porção extra de energia. O passo adiante requer mais destemor. Da necessidade entende-se o seguinte: desconfortável, precisa, voluntária. O passo de través, torto. Mecanismos exóticos, enérgicos, soltos, livres, aquecidos mediante confinamento em espaço diminuto. Mecanismos produzem quase sempre temeridades. É autoexplicativo: temeridades são o que são. Se calharem agradar, perdem o sentido. De acordo com renomado pesquisador das mídias, nada é escolha. Tudo é conformidade, adequação, jogo de peças de encaixe. Enterrava fundo a consciência modular, montável, de modo que, no dia depois do dia, quando acordasse novamente refém da organiza...