Publicado no jornal O Povo em 23 de agosto de 2012.
Não há beleza sem pudor. Nem paixão que se meta no claustro. O caso de Amelinha contraria ambos os axiomas: formosa e interessante. Sem contar que era um prodígio na arte de levar a carne a passeio.
Nas primeiras horas do dia, dirigia-se às veredas fecundadas de húmus do parque ecológico da cidade. Era o início da segunda década do século XXI, e a fêmea de 27 anos escandalizava, aos poucos, a população economicamente ativa do Cocó.
Antes e depois de Josafá Cristo Azinhas, marido cujo zelo os jornais da época trataram de sublinhar, Amelinha teve “mil e uma acareações sexuais” – grande parte delas sob o testemunho naturalmente pudico de saguis e louva-deus, dois bichinhos graciosos.
Não ocultava nada. E embora tenha acolhido no mato surpreendente variedade de machos da região, a rapariga proclamava a toda Fortaleza: jamais Cristo fora enganado. Tinha ciência de tudo. Foi meu único amor, o Cristo, e mais ninguém.
Se o cônjuge tolerava o footing voluptuoso da esposa, a conclusão não podia ser outra: amava a doce criatura. A propósito do escárnio da vizinhança, alçava o queixo e cuspia feroz: “Amar é ser fiel a quem nos trai”. Com isso pretendia silenciar a padaria, o culto, o cinema e a turma do churrasco nos fins de semana.
Mas nada importa agora. Amélia – da pia batismal, Catarina Duarte Spanza – está morta. Um enigma, um mistério, uma horrível emoção, diria o cronista maior. A polícia relata: “Final de domingo, a vítima deixa um animado convescote. Na Via Expressa, dois homens em uma moto obrigam-na a encostar o Honda Civic. Disparam cinco vezes e fogem”.
Tentativa de assalto? Conspiração de esposas traídas? Fatalidade? Crê-se ainda em fatalidades?
Homenzinho atarraxado, fanho ao telefone e imoral pessoalmente, o delegado que investiga o crime revela: nenhum pertence subtraído. Por ora, ninguém preso.
Convém lançar a questão, que a memória da mocidade é terreno cediço: que fazia Amelinha no parque? Anotava espécies para estudo futuro? Respirava o fresco da manhã? Protestava silenciosamente contra o fechamento de trilhas à comunidade?
Decerto não. Ocupava-se exclusivamente de levar a carne a passeio. Ali, no matagal?, pergunta o leitor melindroso. Sim, senhor. Afinal, quem do mato se amiga não passa sufoco na vida. Ardia-se no bosque urbano.
Modus operandi infalível regia as passadas: primeiro, caminhava à toa por 15 minutos. Dava-se o direito de ir sem muita maquiagem. Punha roupa folgada, geralmente saia ou um short mais fácil de fazer escorregar canela abaixo. Dispensava sutiã. Música nos ouvidos, seguia, maior bocado de mulher.
Até que esbarrava no candidato. Contato visual objetivo. Verbal, quase nada. Lépida, guiava o tipo ao verde cerrado mais perto. A conjunção não levava mais que meia hora.
Fato é que, malogradas as tentativas de se conformar à aridez monogâmica, normal que a alcunha venenosa não demorasse. Há por aí uma “dama do parque” fazendo estragos à família fortalezense, torpedeavam as cunhãs mais ciosas.
Na academia, no shopping, na barraca de praia, no calçadão: Amélia não era mais Amélia. Era a “Dama do Parque”. E foi ficando conhecida do povo.
É de pasmar que, agora, chegue a notícia: morta a Dama do Parque. Sem emoção, sem justiça, sem um ponto de exclamação. Os mesmos idiotas da objetividade.
Sobre a ex-mulher, de quem se separara por futrica boba, Cristo, o marido ideal, sapecaria: “Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”.
Quis dizer apenas: fui feliz ao lado da Amélia, traído por Amélia, amado por Amélia. A morte e o amor são realmente um enigma, um mistério, uma horrível emoção.
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